Começo
O texto que segue, eu o escrevi de uma sentada agora no finalzinho do dia Fiquei pensando num romance. Aparentemente, policial, mas eu não o quero assim. Fui escrevendo sem pensar muito, deixando fluir as ideias que me vinham. Parei com dois parágrafos e resolvi colocá-lo aqui como uma proposta, um convite, quase um desafio. Todo mundo sabe que o romance, como gênero narrativo, teve nos jornais, uma de suas primeiras manifestações materiais no mundo moderno. O famigerado "folhetim" fez muito sucesso. Algumas vezes, ao longo da História, mais de uma pessoa participou da confecção destes folhetins, simultaneamente. A proposta, o convite, o desafio: cada leitor deste trecho escreve dois parágrafos dando continuidade aos que eu escrevi. Ao fim de um tempo, teremos material, quem sabe, para consolidar o tal romance a inúmeras mãos. Tenho certeza quase absoluta de que convite, o desafio, a proposta vai morrer na casca. Ainda assim, eu tento. Quem quiser que se habilite. Segue o texto:
O nome do romance é A última vontade de Otacílio Piffio. Otacílio Piffio era também o pseudônimo do autor. Na reunião do júri com o editor e o mecenas do concurso, a opinião foi unânime. Era o vencedor. O romance foi selecionado entre outros 3725. Destes, 2400 passaram por uma triagem. Trezentos professores universitários de diversas partes do país leram 80 romances cada e selecionaram dois. Os 600 selecionados passaram pelo crivo de um júri de 10 personalidades literárias nacionais que, por sua vez, selecionaram três cada um. Da mesma forma, o júri oficial leu os trinta selecionados e escolheram o melhor. A última vontade de Otacílio Piffio. Na reunião de registro do vencedor, foi revelado o nome do autor da obra. Para surpresa de todos os jurados era um professor universitário de 67 anos de idade. Consternação. Susto. Sarcasmo. Estas foram as reações de cada um dos jurados. O editor e o Mecenas não conheciam o autor. Os outros três, sim. Era óbvio, o incômodo. O resultado era irrecorrível, conforme o edital. Havia um jornalista convidado para funcionar como fiel da balança. Ele não conhecia ninguém naquela sala. Por dentro, divertia-se com a situação. Percebeu o constrangimento. Não entendeu muito bem o porquê dele imediatamente. No entanto, na medida em que os sussurros eram trocados e os olhares enviesados se cruzavam naquela sala, densamente eletrificada pelo mal-estar causado pelo resultado revelado, o jornalista ria-se por dentro e entendeu tudo. Não havia segundo colocado. O prêmio ia, definitivamente para o tal professor malquisto. O mecenas, sem perceber muito bem o que passava, perguntou se havia algum problema. Silêncio absoluto. O editor, ciente da situação, tentou descontrair o ambiente. Contou uma piada. Ninguém riu. Não havia o que fazer. Não havia segundo colocado. Não havia a menor possibilidade de se ter outro resultado. O presidente do júri ainda tentou, sem sucesso, argumentar que poderiam fazer uma segunda rodada de avaliação. O argumento foi o de que, apesar da unanimidade pelo resultado, havia outra questão: alguns pontos do romance não foram assim tão merecedores de premiação. Os outros dois jurados hesitaram. O editor deu a martelada final. O campeão era o professor. O romance A última vontade de Otacílio Piffio. Seiscentas e sessenta e seis páginas de texto. Um calhamaço. Dez capítulos de sessenta e seis páginas cada, mais uma “coda” de seis páginas. Um cartapácio. Números cabalísticos, pensou o jornalista.
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A camareira, pressurosa, abriu a porta. O aviso de “Não me perturbe” estava na porta. Mesmo assim ela abriu. Havia dois dias que o aviso estava ali. Ela consultou as colegas dos outros turnos e todas afirmaram não ver a porta sem o aviso. Então, decidiu entrar. O quarto estava escuro. Cortinas cerradas. Cheiro de comida guardada, de vinho azedo, de vela queimada. Pediu licença. Disse “bom dia”. Nada. Nenhuma resposta. Entrou. A cama estava desfeita. Papeis sobre a mesa cheia de tocos de cigarro, meio copo de vinho e restos de farelo de pão. Os talheres meticulosamente colocados sobre o prato, comme il faut. Foi catando as migalhas de pão. Jogou os tocos de cigarro no lixo. Dirigiu-se ao banheiro. Cirurgicamente limpo. Trocou as toalhas. Recompôs a cesta de gadgets de higiene. Lavou o banheiro. Fechou a porta e voltou ao quarto. Ao contornar a cama, deu um grito. O corpo de um homem, nu, estendido no chão. Sua expressão era tranquila. Não havia sinal de violência. Ela pegou o telefone e chamou a gerência. Em pouco menos de uma hora, um investigador policial chegou. Entrou no apartamento em que estavam a camareira, o gerente e mais um funcionário. Ninguém tinha tocado no corpo. A equipe de perícia chegou em seguida. O investigador fez algumas perguntas, pediu que os três comparecessem à delegacia no dia seguinte para tomar seus depoimentos. Um fotógrafo registrou tudo. Uma senhora, muito calmamente, recolheu tudo o que encontrou sobre a mesa, no chão. Tirou as roupas do morto do armário e colococou em sua mala. Perguntou se a camareira encontrou alguma coisa no banheiro. Nada. Saiu com tudo num carrinho de mão. O silêncio era constrangedor. A camareira choramingava um pouco. O gerente, nervoso, não queria escândalo. O outro funcionário olhava tudo com cara de quem não entendia nada do que se passava. Em pouco mais de duas horas, o quarto estava limpo, pronto para receber outro hóspede. A polícia já tinha ido embora quando o telefone da gerência tocou. A recepcionista passou a ligação para o escritório central, onde estava o gerente. Este, ao atender, levantou a sobrancelha esquerda. Disse meia dúzia de monossílabos. Pegou um envelope guardado no cofre e saiu. A camareira viu quando ele atravessou a rua. Ela esperava pelo marido que a ia buscar todos os dias. Chovia forte. O dia acabava numa melancolia úmida, mofada, enfadonha. A camareira deu um suspiro e acendeu um cigarro. Escureceu. Mais quinze minutos e o marido da camareira chegou. O gerente voltava para o hotel: estava na hora de concluir seu expediente. Tinha que passar informações e o “caixa” para o seu substituto no turno da noite. O funcionário que acompanhou a chegada da polícia já tinha ido embora. Morava bem ao lado do hotel. Depois de jantar, ele ligou o rádio e sentou-se diante da janela que dava para o jardim no fundo de sua pequena casa. Pegou um livro para ler. Tomou um gole de chá. Ligou o rádio. O locutor anunciava que A última vontade de Otacílio Piffio era o romance ganhador do prêmio daquele ano na cidade. O funcionário engasgou-se com o chá. Franziu a testa. Desligou o rádio. Fechou a janela e foi dormir.