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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

16.02.23

Entrevista

Foureaux

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Uma pequena entrevista que não agrada a muita gente. Como também não agradam à mesma gente os livros que este homem escreve. No entanto, não posso deixar de dizer que o admiro pela competência, pela clareza, pelo conhecimento  e pela assertividade que demonstra. Um homem inteligente que atinge o ponto fraco, sem o intuito de ferir por ferir. Denuncia o equívoco, demonstra sua organicidade e aponta as maneiras possíveis de encontrar a resposta mais adequada – jamais a “certa”, nem a “definitiva”, como aqueles que se com ele se incomodam.

Até setembro de 2016, o canadense Jordan Peterson era um pacato professor de psicologia clínica na Universidade de Toronto, que mantinha um canal no YouTube popular entre os alunos e tinha escrito um ... livro pouco conhecido sobre a relação entre psicologia, política e religião. A aprovação da Lei C-16, no Canadá, que tornou crime a discriminação contra transexuais, travestis e “pessoas não binárias”... (as que não se identificam nem como homem, nem como mulher), acabou com a calmaria e fez de Peterson uma espécie de popstar. Enfurecido com o fato de poder ser processado se deixasse de usar os chama... pronomes neutros – ze em vez de he ou she, equivalente ao “elx”, popularizado na internet, para ele ou ela em português —, Peterson pôs a boca no trombone contra o que via como excessos da lei. Um debate sobre o tema na TV inglesa com sua participação foi visto mais de 13 milhões de vezes no YouTube. Alçado a porta-voz do politicamente incorreto, viu seu segundo livro, 12 Regras Para a Vida: Um Antídoto Para o Caos (Editora Alta Books) em oito meses virar bestseller, com mais de 2 milhões de cópias vendidas no mundo (e quase 75.000 exemplares no Brasil). De Oslo, escala da turnê de divulgação do livro, Peterson falou a VEJA por telefone.

 

O senhor ganhou projeção internacional ao se opor à lei que regulamenta o uso de pronomes neutros para transgêneros. Qual é o problema com a lei?

A maioria dos que a apoiam afirmam que, na construção da identidade humana, o sexo biológico, a expressão do gênero e as preferências sexuais de uma pessoa podem variar de modo completamente independente, pois são meras construções sociais. Isso não é verdade. Estes fatores não apenas não variam de forma independente, como estão intimamente relacionados. É claro que, em algum grau, são construções sociais, mas menos do que os ativistas alardeiam. Não gostei de ver aprovada uma lei baseada em uma premissa tecnicamente falsa só para cumprir uma agenda ideológica, sem reflexão a respeito e sem consideração pelas consequências – a começar pela restrição da liberdade de expressão.

A lei não é uma forma de garantir os direitos dos transgêneros?

Garantir estes direitos não tem nada a ver com a forma como são chamados. Esta é uma escolha voluntaria. Eu não tenho nada contra usar com meus alunos o pronome que eles preferirem. Mas o governo decidir como a pessoa vai se expressar só para agradar uma parcela da sociedade é errado. Não se pode colocar limites na forma de expressão. Recebo muitas cartas de pessoas transexuais que apoiam meu trabalho, se incomodam com o papel de símbolo de uma campanha da esquerda ultrarradical pela dissolução das identidades clássicas e querem mesmo é tocar sua vida privada da melhor forma possível.

Não seria saudável e até justo proteger a população LGBT de discursos nocivos? 

De jeito nenhum. É precisamente o oposto. A conduta correta para lidar com a vulnerabilidade é identificar a razão, criar uma hierarquia de medos e aprender a confrontá-los e dominá-los. Proteger é uma abordagem errada. A história da psicologia clínica nos últimos 150 anos comprova que a exposição voluntária da pessoa ao que a ameaça ou incomoda é o caminho certo para ganhar coragem e superar problemas. A ideia de que proteger as pessoas é agasalhá-las em seus micro espaços, para que nunca ouçam uma opinião que as ofenda ou contradiga, só faz com que elas se tornem mais fracas e amargas.

O senhor já declarou que a capacidade de pensar embute o risco de ser ofensivo. É impossível debater sem ofender?

É claro que você deve procurar ser sempre o mais gentil possível. A questão é que só precisamos pensar de verdade quando aparece um problema de solução importante, até de vida ou morte. Se a solução é tão importante, haverá várias formas de discuti-la, nem sempre compatíveis entre si – e aí começa o debate conflituoso. Os pontos de vista sempre vão colidir quando o que está em jogo é tentar mudar a maneira de a outra pessoa ver o mundo. É impossível ter esta discussão sem conflito, mesmo procurando ser o mais gentil possível.

Fonte: Jordan Peterson: A liberdade de expressão é perigosa; a alternativa é pior | VEJA (abril.com.br)

14.04.22

Ironia

Foureaux

O texto que segue não é meu. Publico-o aqui por ser um exemplo de fina ironia, desvelada numa linguagem acuradíssima. É texto que dá prazer de ler. E muito. As omissões representadas por (...) se devem ao fato de que desejo preservar a identidade das “personagens” envolvidas, mas, acima de tudo e antes de mais nada, a minha própria tranquilidade. Não quero ser incomodado por A ou B em função de ter publicado este texto. Não desejo ser acusado “disso ou daquilo” por fazê-lo, como se isso, e somente isso, fosse suficiente para me acusar de estar “de um lado ou de outro”. Espero que gostem (e se divirtam!) com um texto tão bem escrito! Espero mesmo, como eu me diverti, e muito!

“A coluna de (...) em O Globo de 14 de janeiro noticia, com chamada na primeira página, que um segurança do Hotel Intercontinental barrou a entrada de uma jovem senhora negra por achar que se tratava de garota de programa, quando ela chegava acompanhada do marido, (...), diretor do (...). No entender do colunista e do editor da capa, o fato tipifica o crime de racismo. A acusação é repetida no dia 15, em matéria assinada por (...), e provavelmente será endossada pelo consenso das classes letradas, dos políticos, dos líderes religiosos, dos artistas e, enfim, de todas as pessoas maravilhosas.

Modismos à parte, no entanto, o segurança não pode ser acusado senão de um erro de raciocínio indutivo, a que qualquer um de nós estaria sujeito em iguais circunstâncias. Todo habitante do Rio de Janeiro sabe que, quando vê na praia de Copacabana um europeu bem vestido e de meia-idade de braço dado com uma negra, em geral não está diante de um quadro paradisíaco de harmonia conjugal por cima das diferenças de raça, mas sim de um caso vulgar de turismo sexual. É fato notório que a eventual atração do europeu por mulheres negras quase nunca dá em casamento, mas, reprimida pelo racismo, vem buscar expressão clandestina em hotéis cariocas, bem longe do olhar fiscalizador dos vizinhos e parentes. Não há nada de anormal nem de criminoso em que um porteiro ou segurança, vendo o par afro-germânico, interprete a cena no sentido mais óbvio e costumeiro, seguindo uma presunção de senso comum e não lhe ocorrendo a hipótese, rebuscada e invulgar, de estar diante de um casal regularmente casado. Se esta hipótese, no caso, coincidiu com a verdade, foi com uma probabilidade de um em mil, para dizer o mínimo. O segurança, longe de ser ele próprio um racista, deve antes ser acusado de prejulgar como racista em incursão sexual furtiva o inocente amigo da raça negra, que santamente se dirigia ao leito com sua legítima esposa. E é certo que sua suposição não se fundou só na observação corriqueira do que se passa nas praias cariocas, mas também num preconceito forjado pelos meios de comunicação, que, disseminando uma suscetibilidade racial exagerada, acabam por induzir as pessoas a encarar como coisa rara e inverossímil o casamento de branco e negra, ou branca e negro, na verdade uma norma e padrão neste país de mestiços.

Qualquer pessoa no pleno uso de suas faculdades mentais, a quem não cegue um parti pris rancoroso e demagógico, vê que o episódio não foi causado por um preconceito racista, mas, bem ao contrário, por uma atmosfera generalizada de prevenção exagerada e neurótica, que procura suspeitos de racismo embaixo da cama e quando não os encontra os inventa.

Desejariam os nossos jornalistas que o segurança, incumbido de suspeitar, em princípio, de todas as mulheres jovens, abrisse exceção sistemática para as negras, fundado na ideia de que muitas delas são casadas com banqueiros suíços? Façam uma estatística, pelo amor de Deus: quantos, dentre os suíços e alemães que entraram em hotéis do Rio de Janeiro no mês passado com mulheres negras, eram maridos delas? Quantos eram turistas que, na sua terra de origem, não desejariam ser vistos com mulher negra?

Fui casado por mais de uma década com mulher negra e ela só foi barrada uma vez, no cinema, porque parecia menor de idade aos 22 anos. Uma jovem de hoje não acharia o episódio lisonjeiro e divertido, como ela, mas faria trejeitos grotescos de dignidade ofendida e chamaria a imprensa para encenar um show antirracista.

É assustador constatar até que ponto a exploração maliciosa do rancor irracional se tornou norma corrente nas nossas classes letradas, chegando a infundir nos cidadãos o temor de fazer uso do bom senso. Quando a razão se torna suspeita, o fanatismo fala mais alto — e um fanatismo não se torna menos letal por se adornar de um falso prestígio intelectual, por se encobrir de pretextos “éticos” ou por ser cultivado como sinal de elegância nos meios chiques. Será que ninguém na imprensa percebe que o temor exagerado de passar por racista coloca o indivíduo numa posição psicologicamente insustentável e neurotizante e acaba por fazê-lo cometer alguma gaffe que a malícia de uns quantos e a tolice de muitos interpretará retroativamente como prova de racismo? Será que ninguém percebe que a neurotização das relações entre pretos e brancos cria artificialmente conflitos raciais a pretexto de evitá-los?

Mas na denúncia contra o segurança há um aspecto ainda mais pérfido. Pois quem espalhou pelo mundo a imagem do nosso país como fornecedor de negras e mulatas para o turista sexual europeu, senão os meios de comunicação que agora caem de paus e pedras sobre o incauto funcionário do Intercontinental? A exibição de peitos e traseiros nos jornais e programas de TV na época de Carnaval não é decerto um incentivo a que os europeus respeitem nossas mulheres negras e se casem decentemente com elas, mas um convite direto e franco a que venham usar e abusar delas em hotéis de cinco estrelas na praia de Copacabana. A confissão descarada de que a mulher brasileira – ou, o que dá na mesma, a mulher mestiça – é artigo para consumo estrangeiro torna-se, por assim dizer, oficializada no momento em que uma revista pornô tem a petulância de se denominar Brazil Export. E não se venha dizer que os pobres jornalistas fazem isso obrigados por patrões malvados: pois o capitalismo da sacanagem não aproveita só aos capitalistas, mas também a seus supostos adversários de esquerda, imbuídos da crença de que o deboche e a pornografia são armas de uso legítimo contra a “moral conservadora”, tanto quanto, complementarmente, é recurso legítimo do combate ideológico atiçar ressentimentos e levar o povo a crer que a inveja rancorosa o mais elevado padrão ético de conduta. Ninguém, entre os responsáveis por tais discursos, pergunta se a confluência de tantas estimulações contraditórias sobre a cabeça do cidadão pode ter outro resultado senão o de destruir nele o raciocínio, o senso crítico e o senso de autonomia pessoal e torná-lo um pateta vulnerável a qualquer propaganda demagógica.

Fatos e ideias, valores e discursos, costumes e pretextos, tudo, mas tudo mesmo, no ambiente mental brasileiro, induz e pressiona o homem comum das nossas ruas a enxergar as coisas como as enxergou o segurança do hotel: suíço com negra é turista com garota de programa. Só que, após ter-lhe ensinado que as coisas são assim e que assim deve ser, ela o pune por acreditar na lição. O episódio não denuncia o racismo de um indivíduo, mas a irresponsabilidade e a confusão mental de toda uma cultura. É compreensível que uma neurose – pessoal ou coletiva – busque exorcizar-se a si mesma por meio de poses de indignação e discursos postiços contra bodes expiatórios. Incompreensível, vergonhoso, inadmissível, é que aqueles incumbidos de a curar – os intelectuais, os jornalistas, os homens de cultura – prefiram criar racionalizações para legitimar o fingimento histérico, fortalecendo a carapaça de defesas contra toda invasão da verdade e da evidência.

Para cúmulo de ironia, o segurança envolvido no episódio é ele próprio mestiço, como aliás o era seu célebre antecessor no papel de bode expiatório, o palhaço Tiririca. Na mentalidade da militância histérica, a repórter (...) deverá, portanto, ser implacavelmente acusada de racista por chamá-lo de “mulato” em vez de “negro”, como exige o vocabulário politicamente correto.”

17.02.22

Sarcasmo

Foureaux

Uma vez mais, o texto que segue não é de minha autoria: por isto, as indefectíveis aspas! Como da outra vez, sei quem é o autor, mas prefiro não mencionar seu nome para não ensejar celeumas. Não quero meu nome em bocas de matildes e de detratores disso ou daquilo. Não me quero associado a um lado ou a outro, por conta de palavras que não são minas. Resolvi trazer aqui esta pérola porque o texto é isso mesmo, uma pérola de sarcasmo, ironia, deboche, galhofa e, de quebra, é um texto muito bem escrito. Pensem o que quiserem e queimem um pouco mais de fosfato para descobrir quem é o autor. Hão de se surpreender! E tenho dito!

“Desejando ardentemente admitido em rodas de intelectuais, pus-me a estudar os temas e a linguagem das publicações culturais e das entrevistas que as pessoas reconhecidamente letradas davam na TV. Meu intuito era saber os gostos e hábitos dessa gente, sem cuja companhia e aplauso a vida humana é, como todo mundo sabe, um tédio, um saco, um inferno. Após alguns meses de investigação, consegui delinear um quadro de normas de conduta, que ponho aqui à disposição de todos os que, como eu, somem a uma atração mágica pelos círculos de gente fina uma vocação incoercível de alpinista social. Aqui encontrarão a fórmula que abre as portas da admissão no grande mundo das pessoas belas e significativas, longe da opacidade cinzenta do anonimato.

Mas não pensem que se trata de um modelo rígido, de um conjunto de fórmulas prontas que qualquer um possa ir copiando sem a menor criatividade. O que importa é aqui menos a adesão expressa a uma tábua de mandamentos conhecida, como o ‘politicamente correto’ dos americanos, do que um tom, um jeito, um estilo sutil pelo qual a intelectualidade reconhece seus membros típicos e os distingue dos indesejáveis, penetras, bicões e caretas de toda sorte. Ao ler os preceitos que se seguem, trate de ir além da letra e captar, como se diz, o espírito da coisa.

  1. O tom certo é queixoso, de modo geral, contra a sociedade e contra a realidade, mas não pode cair no negativismo completo e deve permanecer soft o bastante para poder fazer coro com as campanhas da ética e da cidadania, que requerem um certo otimismo – aquele otimismo capaz de levar as várias classes a se congraçarem para promover fraternalmente a luta de classes. Você não deve falar mal de ninguém, exceto daqueles que a imprensa reservou especialmente para esse fim: Collor, Maluf, Quércia, Ricardo Fiúza, os empreiteiros. As demais pessoas famosas devem ser sempre mencionadas como portadoras de qualidades excelsas, de preferência mediante o uso das expressões ‘pessoa maravilhosa’, ‘um ser humano muito especial’, etc. De maneira nominal e individualizada, tais expressões aplicam-se a figuras do show business, dos negócios ou da vida cultural, principalmente aquelas que você nunca viu mais gordas, mas das quais todo mundo diz essas coisas. De maneira impessoal e coletiva, e a uma higiênica distância em caso de mau cheiro, aplicam-se aos pobres e às vítimas, categoria que compreende os meninos de rua, os sem-terra, os índios, os garotos e garotas de programa, os líderes do Comando Vermelho, as mulheres em geral e sobretudo aquelas que estão doidinhas para abortar, os cantores negros que vendem cinco milhões de discos, os gays e lésbicas, o Betinho, o candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva e alguns bicheiros cuja origem popular conta mais do que seus saldos bancários; excluem-se dela, porém, aqueles pentelhos que querem tomar conta do nosso carro e, de modo geral, os pedintes (os letrados sempre foram contra dar esmolas na rua; antes, porque atrasava a revolução; agora, porque acham um acinte esses sujeitinhos apelarem à caridade individual e apolítica dos transeuntes, boicotando a campanha do Betinho). Se por acaso você está na frente de uma câmera de TV, não há limites para o emprego da expressão ‘pessoa maravilhosa’: mas se lhe ocorre usá-la com relação a alguém que nunca foi chamado assim, faça isso logo, antes que o próximo entrevistado o faça.
  2. Se entrar numa disputa verbal, exponha suas crenças com forte convicção, mas não caia na esparrela de tentar provar que são verdadeiras. Caso você não o consiga, será considerado um chato e prolixo. Caso consiga, será odiado como um intolerante e dono da verdade. Sobretudo não use argumentos lógicos de espécie alguma, que são considerados autoritários e repressivos. Experimente alguma coisa mais liberal e progressista, como levantar a voz, fazer caretas e dar pulinhos como José Celso Martinez Correia ou fazer chantagem emocional, que são considerados meios legítimos e democráticos de persuasão. Caso falhem, recorra à programação neurolinguística, à hipnose ou a alguma outra forma de manipulação subliminar, que são todas bem aceitas pela comunidade educada como instrumentos adequados para fomentar a autenticidade nas relações humanas. Qualquer que seja o caso, repita várias vezes, durante a performance, o mote: ‘Não há verdades absolutas’, e verá que esta ideia deixa as pessoas muito felizes e aliviadas, mesmo porque elas se sentiriam arrasadas caso topassem com alguma verdade que se recusasse a mudar conforme os seus desejos. Se tiver encantos físicos, use-os abundantemente em defesa de suas teorias: eles são um dos mais fortes argumentos entre as pessoas cultas. Se não conseguir persuadir ninguém, pelo menos adquirirá uma fama de sedutor, palavra que, embora designe um crime previsto no Código Penal (Art. 217), se tornou, talvez por isto mesmo, um dos mais altos elogios que se pode fazer a alguém nos círculos intelectuais.
  3. Quaisquer ideias conservadoras ou que tenham a fama de sê-lo devem ser sempre tratadas como preconceitos, por mais conceptualmente elaboradas que sejam – de modo que a palavra preconceito deixe de designar de modo genérico qualquer julgamento proferido por hábito irrefletido e passe a rotular determinadas ideias em particular, isto é, aquelas que não são muito apreciadas nesse ambiente seleto. Se você aprender a usar direitinho a palavra preconceito, logo as pessoas passarão a concordar automaticamente com tudo o que você disser, pois têm horror a preconceitos.
  4. Identifique logo a minoria discriminada a que pertence – pois todo mundo pertence a alguma – e exiba-a como um cartão de ingresso: ela dá direito a ser bem recebido neste círculo. Não venha com essa de que não tem nenhuma. Se você não é preto, nem gay, nem judeu, nem baixinho, nem gordo, nem índio, deve pelo menos ter o peru pequeno. Não precisa sair contando isso para todo mundo; diga apenas que pertence à categoria dos fisicamente prejudicados, termo recém desembarcado que impõe o maior respeito.
  5. Qualquer que seja a posição social e a origem das riquezas do falante, ele deve dar a impressão de que teria tudo a ganhar e nada a perder com uma revolução comunista. O socialite, pois que os há de montão entre os intelectuais, deve sempre deixar crer que está mais solidário com os sem-terra do que com os seus colegas de diretoria do banco.
  6. Quando se trate de manifestações culturais, elas devem expressar, sobretudo, essa gama de sentimentos coletivos, e nada dizer ao público com que ele já não esteja disposto a concordar de antemão. Mas é importante dar a essa pasta homogênea de opiniões concordantes um status de heresia, de desvio, de marginalismo original e não-conformista, para que os ouvintes e espectadores possam todos sentir-se heréticos também, já que a coisa que mais faz um sujeito se sentir solitário e abandonado hoje em dia é ver-se fora da categoria dos excluídos.
  7. Em matéria de sexo, deve-se falar a mesma coisa que todo mundo, mas dando sempre a impressão de ser o primeiro a fazê-lo, de estar rompendo as regras estabelecidas e desafiando com incalculável ousadia a ira do convencionalismo repressor. Se tiver de admitir que é heterossexual, faça-o com discrição. Se mencionar a Aids, que seja num tom de vaga revolta contra o establishment. Caso sinta firmeza, diga algumas palavras contra o Papa, que não deixou nossas mães nos abortarem, o safado.
  8. Se alguém lhe perguntar sua religião, opte por uma destas: duendes, nenhuma, afro, new age (importada ou nacional), Lair Ribeiro, satanismo light. Não caia jamais na besteira de dizer que é católico, exceto se tiver fama de comunista, pois aí essa opção extravagante será bem acolhida por todos como saudável manifestação de hipocrisia. Muito do prestígio do Lula provém de as pessoas acharem que ele só é católico por conveniência.
  9. Quando puxarem a conversa para o lado literário e citarem alguma obra que você não conhece, afirme resolutamente que ela rompe com as convenções do gênero. Você agradará a todos e não terá a menor possibilidade de errar, pois há meio século não se publica no Brasil uma obra que não rompa novamente com alguma convenção literária do tempo de Walter Scott.
  10. No visual, você deve passar uma impressão de saúde, bem-estar e riqueza dignos de uma autêntica pessoa maravilhosa, ao mesmo tempo que em palavras sugere ser uma vítima de um mundo mau e sem sentido, onde um Deus maligno nos abandonou sem outro socorro além das camisinhas e da campanha do Betinho.
  11. Se lhe perguntarem de economia e política diga uma destas três coisas, ou, melhor ainda, todas elas: ‘Sou contra a privatização, mas isto não quer dizer que seja a favor da estatização’. ‘O socialismo faliu e a solução para o Brasil é o PT’, ‘O importante é que o movimento da massa não termine em pizza’.”

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