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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

30.08.23

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Se eu conversasse com Deus

Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?

29.08.23

OIP.jpg


Escrevi o texto abaixo ao som do primeiro movimento da Sonata ao luar, de Beethoven. Veio assim, de uma vez. Será ideia para um início de romance? Quem sabe, um esboço de peça teatral. Não sei. escrevi de uma vez, sem pensar. Quase fiz a mesma coisa de novo, ao ouvir um Noturno de Chopin, o mais popular, o número 2. Desisti. Fiquei com o impacto do primeiro gesto...

A cena tem que ser totalmente coreografada. Não sei se é possível, mas tem de ser. O clima se divide entre tenso e melancólico. A luz não é muita, nem pouca. O cenário tem poucos elementos. Uma personagem está recostada numa poltrona e observa a outra que faz as malas. Tudo coreografado, cada movimento, cada inflexão de olhar. A câmera passeia entre as personagens e os elementos de cena, coreografado também o seu movimento. O clima muda para um tom acima. Desespero, quase. As duas personagens por uma vez, e apenas uma, se olham. Talvez no terceiro terço da sonata. Olhar também coreografado. A personagem continua arrumando as roupas e objetos na mala. Acaba e se volta para a porta. Lentamente, coreografadamente, vai andando. Abre a porta. Sai. A outra personagem não se move. A câmera dá um close em seu olhar. Entre melancólico e desesperado. Tenso é o clima. A câmera repousa sobre a janela que mostra a outra personagem entrando um carro. A personagem, que fica se levanta. Vai até a porta e leva a mão à maçaneta. Desiste de abri-la. Tudo coreografado. Olha à sua volta. Algumas peças de roupa jogadas pelo chão. Um gato passa lentamente. A personagem se senta. Suspira. Fecha os olhos e a música termina com a câmera em close num livro aberto, sobre o qual há uma caneta. Fim.

21.08.23

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Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

sd. Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). 1ª publicação in Presença, nº 38, Coimbra: Abr. 1933.

 

 

30.07.23

A exatos 28 dias, numa tarde de sábado como a de hoje, estava eu em Lisboa, para lançar meu livro Andando descalço em asfalto quente – miragens poéticas sob os auspícios do Real Circolo Francesco II di Borbonne, do qual sou membro. O livro encontra-se à venda na página da Editora Pedregulho (www.lojapedregulho.com.br, para quem, talvez, se interessar...). Uma tarde quente do verão alfacinha. Salão cheio. Gente amiga. Evento caloroso, simpático, agradável (apesar do calor), coroado com um jantar no restaurante Clara Jardim (que recomendo vivamente). Na ocasião, três amigos falaram: Luis Laforga Granjo, Ana Cristina Martins e Vitor Escudero. Dos três, apenas o primeiro escreveu um texto que, com sua autorização aqui compartilho. Fiquei honrado, comovido e grato.  Segue o texto. 

"Andando descalço em asfalto quente – miragens poéticas: uma análise... 

Esta obra apresenta-nos uma poesia pessoal, íntima, em jeito de quem nos conta uma história ou histórias. Histórias da sua vida. O destino, a sina de uma vida preenchida, vivida, saboreada em cada momento, onde o belo é apreciado com um profundo sentido estético. É revelada a importância da força interior, motivada pela vontade, reforçada pelo desejo. A visão instrospectiva denota um elevado sentido de crítica pessoal e uma enorme sensibilidade aos pequenos gestos, impregnados de grandes sentimentos. A busca de conhecimento, a ânsia de saber mais sobre o mundo, sobre os outros, surge simultaneamente como objectivo e como motivação. A inexorável passagem do tempo, que nos limita a existência e nos coloca numa determinada época, molda a nossa essência, a nossa natureza e faz-nos ansiar por um futuro melhor. É essa esperança, essa fé, que nos faz acreditar que os sonhos são possíveis, são realizáveis. Estes poemas são um libelo optimista ao génio da criação humana, que se traduz em arte. A vida é uma viagem que é Iluminada por tudo o que criamos e valorizamos. Revelam também a importância da utilização dos nossos dons para concretizar os nossos sonhos, sendo persistentes sem nunca desistir. Mas, identificando também aqueles momentos em que devemos deixar-nos levar, usufruindo das dádivas que a vida tem para nós. A sensualidade espreita timidamente em certos momentos. A sugestão de um toque, de uma carícia... Temos de nos conformar com o real, com aquilo que de facto acontece, mas o desejo, esse, continua lá, inconformado, insaciável, fazendo a ponte entre nós e futuro, empurrando-nos para a frente, sem a preocupação de chegar, pois o mais importante é andar, percorrer o caminho... No fundo, há a preocupação de caminhar pela vida, pelo tempo, de uma forma em que nos possamos cumprir, realizando as obras que a nossa natureza nos impele a concretizar. Pois se eu sou fogo, não poderei ser água, nem o inverso! Sempre naquele limbo entre o real e o metafisico. O que será a realidade senão a soma de todas as realidades pessoais... Aqui se percebe a importância do outro, de não estar sozinho... Aprendemos a ultrapassar os obstáculos com as armas que nós mesmo construímos, confiantes, valorizando cada nova vitória, e aprendendo com a frustração de todas as vezes que não fomos capazes de o fazer... Mas naquelas vezes que realmente conseguimos, o fruto aguarda ser colhido, o prémio merecido, que nos revigora e fortalece para as batalhas seguintes. Sem nunca olvidar que apesar das escolhas que têm de ser feitas, a Liberdade fala mais alto; por muito que custe, há que ser livre em primeiro lugar, e depois, sim, Lutar! Nem sempre é fácil fazer escolhas. O que é o Bem? O que é o Mal? Que cruel paradoxo é perceber quão ténue é a fronteira entre ambos... Como distinguir? Como saber quem somos? Lembrar sempre o nome, nunca esquecer. Mesmo na sua ausência, lembrar do prazer... A ânsia fica mais leve, dormente, e a sombra ·já não é disforme, tem um contorno. Fica a promessa do retomo que emoldura a saudade. Será ilusão? Que importa? A tristeza amainou e o silêncio já não magoa. A luz da esperança ilumina o desejo. Talvez amanhã... O amor estará sempre lá, ainda que adormecido, na chuva, no vento e no seu sorriso. É cíclico e continua à espera... A cadência ritmada da vida que flui e que nos obriga a seguir o seu ritmo permite, no entanto, que nos debrucemos sobre as coisas pequenas, os pormenores que tantas vezes são o mais importante. E o que fica na memória ao longo do tempo, os despojos da vida, é o que faz parte de nós, é o rasto da nossa existência que permanece e que conta quem fomos...".

27.07.23


XXI


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento…

Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…

Alberto Caeiro

29.06.23

Voltar. Verbo transitivo indireto e intransitivo. Tem o sentido de: vir ou ir (de um ponto ou local) para (o ponto ou local de onde partira ou no qual antes estivera); regressar, retornar. Como transitivo indireto e bitransitivo significa restituir ou ser restituído (a quem possuía ou ao local de onde fora retirado); devolver ou ser devolvido; retornar. Em qualquer das duas “situações, para mim, é um prazer, sobretudo quando objeto e fundamento, sentido e razão do “voltar” é esta cidade encantadora que leva o nome de Lisboa. Conheço-a desde 1988, quando cá estive por primeira vez. aqui, toda vez que venho, sinto como se estivesse voltando para casa. Hoje, de novo aqui, antes de sair de casa, lembrei-me de um poema: Lisboa revisitada, 1926. Claro que tinha de ser do heterônimo Álvaro de Campos. Depois dele... digo mais nada! (Ah... a foto ilustrativa, eu tirei da internete).

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Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram,

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver…

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir…

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim ―
Um bocado de ti e de mim!…

 

 

 

01.05.23

Um poema. Um poema de um poeta. Um poeta mineiro. Que poeta! O poema não pede análise, mas audição. Quem quiser ouvir a voz do poeta, siga esta ligação:

https://www.youtube.com/watch?v=VnesgP40agw

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Consolo na praia

Carlos Drummond de Andrade

 

Vamos, não chores

A infância está perdida

A mocidade está perdida

Mas a vida não se perdeu

 

O primeiro amor passou

O segundo amor passou

O terceiro amor passou

Mas o coração continua

 

Perdeste o melhor amigo

Não tentaste qualquer viagem

Não possuis carro, navio, terra

Mas tens um cão

 

Algumas palavras duras

Em voz mansa, te golpearam

Nunca, nunca cicatrizam

Mas e o humor?

 

A injustiça não se resolve

À sombra do mundo errado

Murmuraste um protesto tímido

Mas virão outros

 

Tudo somado

Devias precipitar-te, de vez, nas águas

Estás nu na areia, no vento

Dorme, meu filho

29.04.23

O texto que segue não é meu. É de Fernando Pessoa. No entanto, o que ele escreveu poderia, caso eu tivesse tido talento, ter sido por mim escrito. Inveja? Sim! Sem pudor, mas com a compreensão estoica de que não coube a mim tal fardo. Porque é um fardo ser famoso, epítome, referência. Uma carta de amor. Às avessas, diria um. Inútil, diria outro. Não digo nada. Não é ridícula, como quis o mesmo poeta! Apenas sublinho (com maiúsculas) os trechos recitados por certa cantora brasileira. A carta fala por si...

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.

Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas, a maioria da gente – homens ou mulheres – escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

QUANTO A MIM...

O AMOR PASSOU. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.

Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.

PEÇO QUE NÃO FAÇA COMO A GENTE VULGAR, que é sempre reles; QUE NÃO ME VOLTE A CARA QUANDO PASSE POR SI, NEM TENHA DE MIM UMA RECORDAÇÃO EM QUE ENTRE O RANCOR. FIQUEMOS, UM PERANTE O OUTRO, COMO DOIS CONHECIDOS DESDE A INFÂNCIA, QUE SE AMARAM UM POUCO QUANDO MENINOS, E, EMBORA NA VIDA ADULTA SIGAM OUTRAS AFEIÇÕES e outros caminhos, CONSERVAM SEMPRE, NUM ESCANINHO DA ALMA, A MEMÓRIA PROFUNDA DO SEU AMOR ANTIGO E INÚTIL.

Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.

Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando

29/XI/1920

 

03.04.23

Mexendo numa pasta de arquivos do/no computador, deparei-me com este texto. Eu mesmo o escrevi. O título do livro a que me refiro aqui escapa-me. Já não sou capaz de localizar na memória o título e a autoria. Gostei de tê-lo escrito, caso contrário não o teria enviado para publicação. No enfado de começar mais um mês do ano sem qualquer perspectiva de dinamizar minha escrita, resolvi publicá-lo aqui no blogue...

PREFÁCIO

Este é um livro de poesia. A forma dos poemas constantes deste livro é única, em seus dois sentidos: todos os poemas se estruturam do mesmo jeito neste livro e esta forma não encontra similar, ou uma forma gêmea, portanto, esta é forma única. Então, nada melhor que começar com uma poesia, mais precisamente, parte de uma poesia. Ainda um pouco mais especificamente, a última estrofe de um poema:

E, inda tonto do que houvera,

à cabeça, em maresia,

ergue a mão, e encontra hera,

e vê que ele mesmo era

a Princesa que dormia.

Não. Não vou fazer a exegese dos versos de Fernando Pessoa. Esta não é minha missão. Ainda que fosse, penso que não seria suficientemente capacitado para fazê-lo aqui. No entanto, os versos do poeta português são lembrados para suscitar uma ideia: a de sugestão, por metonímia. Não podia ser de outra forma! Os últimos versos de “Eros e Psiquê” – este é o nome do poema – me fazem considerar a ideia de sugestão. O sujeito poético devaneia (“inda tonto do que houvera / à cabeça em maresia”) que buscava uma princesa e, ao final de sua busca, sob a sugestão do desejo que o move constata diferentemente “que ele mesmo era / a Princesa que dormia”! Um exemplo bastante ilustrativo do poder da sugestão. Digo isso pois, penso, no contexto deste livro, que uma ideia pode sugerir diversas e multifacetadas expressões.

Não é dado à capacidade humana, por mais desenvolvida que seja, afirmar absoluta e terminantemente o que quer que seja a partir de uma ideia. Ao contrário, tudo o que se diga vai sempre ser eclipsado por essa figura misteriosa, a da sugestão. Um cheiro não tem o mesmo efeito para todos os narizes. Um jardim diante de uma residência não vai receber a mesma admiração de todas as pessoas que passam diante da mesma residência. Arrisco-me a dizer que nem mesmo todos os moradores da casa diante da qual está o jardim têm a mesma opinião, reagem da mesma forma, enxergam o jardim da mesma maneira. Este é o poder absoluto e inescapável da sugestão. Creio que esta ideia pode muito bem servir de bastião para a leitura que se faz convite nestas primeiras linhas. Afinal isto aqui é um prefácio.

No dicionário, prefácio é um substantivo masculino que nomeia texto preliminar de apresentação, geralmente breve, escrito pelo autor ou por outrem, colocado no começo do livro, com explicações sobre seu conteúdo, objetivos ou sobre a pessoa do autor. De certa forma, é um resumo do conteúdo de um livro, exibindo exemplificações de capítulos e narrando o que está introduzido neles. Um prefácio, eventualmente, contém algumas impressões de terceiros sobre a obra. Nele, o autor busca instigar o interesse do leitor para o livro, trazendo um ar de curiosidade. Nem todas as palavras acima são minhas. Faço-as assim para deixar claro que não vou fazer literalmente o que o verbete sugere. Sou um chato. A única exceção está circunscrita a uma das “utilidades” do prefácio: “instigar o interesse do leitor para o livro”. Punto i basta!

Seguindo a inflectiva ideia de sugestão, considero que a ideia de “estações”, coincidentemente o título do livro, é rica em nuances semânticas e imagéticas, assaz sugestivas. Pode ser que muita gente já tenha pensado nas estações da Via Crucis. Esta é uma via inteligente e plausível na miríade de associações possíveis. As estações do ano seguem o mesmo itinerário, não resta dúvida. Estações ao longo de uma estrada, de uma via férrea, entre as ondas do mar. Tantas sugestões... Quero crer, assumindo o risco de uma redução, que a ideia de estações do ano predomina aqui. Então, recorro à Mitologia.

Deméter era a deusa do trigo e, de um modo geral, de toda a terra cultivada. Senhora dos cereais. Os romanos lhe deram o nome de Ceres. Parece ter sido uma sugestão bem sucedida! Da sua união com Zeus, teve uma filha, Perséfone, que cresceu, muito bela e feliz, na companhia das ninfas e de duas meias‑irmãs, as deusas Ártemis e Atena. Hades, o deus dos infernos, que era irmão de Zeus e, portanto, seu tio, apaixonou-se perdidamente por ela. Um dia, quando a jovem passeava despreocupada pelos prados verdejantes, ao colher uma flor, a terra abriu-se de repente e Hades surgiu para a raptar e levar consigo para o mundo inferior onde reinava. Deméter ouviu os gritos de aflição da filha e correu para a ajudar, mas nada pôde fazer. Nem sequer sabia onde ela estava nem quem a tinha levado. Desesperada, começou a percorrer o mundo em busca da filha, sem comer nem beber, sem se preocupar com o seu aspeto nem tratar de si, sem cuidar de nenhuma das suas tarefas. Acabou por conseguir que o Sol, que tudo vê, lhe revelasse quem fora o raptor da filha. Decidiu então não mais voltar ao Olimpo, a morada dos deuses, e renunciou às suas funções divinas até que a filha lhe fosse devolvida. A terra foi ficando estéril e os homens com fome, pois as culturas secaram e morreram. Tudo era devastação e abandono. Então Zeus, responsável pela ordem no mundo, preocupado com a calamidade causada por Deméter, ordenou a Hades que devolvesse Perséfone. A jovem, porém, por fome ou instigada por Hades, comera já um bago de romã no mundo das sombras e esse pequeno gesto ligara-a para sempre ao reino do marido. Teve então de se chegar a uma solução de compromisso e a um acordo: Perséfone passaria metade do ano com a mãe, no Olimpo, e a outra metade com o marido, no mundo dos infernos. Assim, quando Deméter tem a filha ao pé de si, está feliz e a natureza floresce: é o tempo da primavera e do verão. Mas quando Perséfone tem de regressar para junto de Hades, Deméter mergulha de novo na maior tristeza: começa então o outono, vem depois o inverno e a desolação na natureza. E é essa a causa do ciclo das quatro estações. Com essa digressão, creio eu, fica chancelada a sugestão que percorre boa parte das aldravias aqui reunidas!

Para bem aproveitar qualquer possibilidade, acredito, há que se ter certa dose de maioridade intelectual. E aqui vai outra “sugestão”. No dicionário, maioridade é identificado como substantivo feminino que nomeia a idade legal em que uma pessoa é reconhecida como plenamente capaz e responsável. No Brasil, isso se dá aos 21 anos. Ora, este livro é parte comemorativa dos 21 anos do Movimento Aldravista de Artes. Em outras palavras, o movimento alcançou sua maioridade. Neste patamar, já tem autonomia de afirmação de seus valores e prerrogativa de defesa de suas propostas e criações. As aldravias aqui reunidas são prova inconteste disso. Resta a celebração que, no caso, dá-se por meio das páginas aqui apresentadas, recheadas que estão de aldravias, o núcleo poético da proposta original. Também por essa trilha é possível ler o conjunto de poemas aqui concertado.

Por fim, quero crer que de maneira bastante coerente, a celebração envolve uma tonalidade menos vibrante, como a particularizar o movimento andante na música. É preciso lembrar que um “movimento” é iniciado, dinamizado e mantido por pessoas. Sua criação, no caso específico, as aldravias, são uma espécie de “prova” de sua própria existência como membros de um silogeu. O livro é este espaço, mais que apropriado. Surge então a oportunidade de considerar outra sugestão: a memória.

Como capacidade de adquirir, armazenar e recuperar (evocar) informações disponíveis, seja internamente, no cérebro (memória biológica), seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial), a tal de memória é instrumento de uma série de manifestações e volições. O conjunto de aldravias neste livro é prova material de uma dessas manifestações. Em certa medida, os poemas aqui reunidos expressam, mesmo que inconscientemente, a memória individual de cada um de seus criadores, coautores, participantes do mesmo silogeu, mesmo que simbolicamente representado pelo livro. Por via de consequência, o mesmo pode ser considerado prova de certa memória coletiva e, por que não, afetiva. Neste caso, trata-se de celebração do que se foi, do que deixou marcas. Mesmo que não explicitamente, a coleção de aldravias celebra, de maneira sensível, em forma de homenagem, a memória de Cláudio Márcio Barbosa e Nivaldo Resende, falecidos este ano. Ambos contribuíram para a cultura, a literatura, especialmente à promoção da Arte Aldravista. Não é preciso que esta homenagem esteja a brotar visível e materialmente nos versos univocabulares que compõem as aldravias aqui reunidas. A celebração está dada, no reconhecimento da participação de ambos no processo de maturação da arte aldravista. Não pode haver homenagem mais explícita e honrosa.

Retomando o início de minhas palavras, várias são as “estações” representadas neste livro homônimo. Devem ter notado que não destaquei nenhum dos poemas aqui reunidos. Fiz isso por prezar a sutileza da leitura. Se digo alguma coisa, corro o risco de ser acusado de induzir o leitor desse livro a erro. Por outro lado, pode ser que haveria quem me agradecesse pela indicação desse ou daquele poema, na consideração particularizada que porventura tivesse eu feito. Não. Definitivamente não! Eu termino como comecei: com versos de um poema. Desta feita, o poeta é José Régio:

A minha glória é esta:

criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

Que eu vivo com o mesmo sem vontade

com que rasguei o ventre à minha mãe.

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

me levam meus próprios passos...

Os últimos versos de “Cântico negro” – um poema belíssimo, contundente – dizem exatamente como me sinto ao concluir este prefácio. Não acrescento mais ideia alguma. Faço apenas um convite: leiam o livro. E desejo apenas uma coisa: que tenham prazer em fazê-lo!

Ave, Verbum! Ave, Poetica!

José Luiz Foureaux de Souza Júnior

Contagem, Outono de 2021

06.03.23

Resolvi fazer uma provocação. Uma espécie de pulo no escuro para os que me leem. Abaixo seguem dois poemas “A” e “B”. Não vou dizer quem são os autores. São apenas três perguntinhas:

Qual dos dois mais agrada você?

O que, num, é mais bonito que noutro?

Qual dos dois é o “melhor”?

Adoraria ver as respostas chegando, mas...

***********************************************************

“A”

Já não verei a parede manchada

pelas contínuas investidas da chuva

(torrencial ou não),

e o cartaz vermelho com os preços

do combustível que alimenta os carros

a soltar fumaça

espalhar fulgem

ajudar a manchar as paredes

acompanhando a chuva

(torrencial ou não).

 

Já não verei a velhinha atravessa a rua

devagar

sobraçando sacola de mercado, 

com o necessário para o dia 

(que a carestia é muita!).

Nem verei o menino que vende balas para levar comida pra casa

(o atraso da revolução é grande).

 

Já não verei a menina que cora com o olhar desejoso do frentista,

nem a careta da beata depois da missa das seis.

 

Já não verei quase nada.

 

Tudo vai ser apenas memória.

Será?

E esse dia está para chegar.

 

***********************************************************

“B”

eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.

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