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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

Tédio

Foureaux, 30.08.22

Já faz tempo, eu sabia

que o tédio habita aqui ao lado,

duas casas depois da minha,

descendo a rua.

Não é muito longe,

seu cheiro enche quartos e sala

e banheiro e cozinha

amainando o espírito de quem chega,

nublando sonhos que se perdem no tempo.

Deixando cada coisa em seu lugar

devidamente envolta na pátina da mesmice.

O tédio é amistoso, não interfere

nem cobra nada.

Pasmado consigo mesmo, observa

e, às vezes, sorri, meio de lado

como a conjecturar as asneiras que vê acontecer

aqui e na vizinhança

que nem sonha ser observada com acuidade

como o lince.

Olhar a beirada puída da toalha de mesa

ou a ranhura no pé do sofá,

a sustentar o peso da banalidade que se assenta

e não se movo, nem com a brisa

da tarde outonal que escurece

o espírito.

Nada disso interessa ao tédio.

Companheiro mudo e solidário,

ele passa despercebido de quem apenas visita,

de passagem, como a procurar a novidade

impossível.

O tédio não é mau,

não fere, nem insiste,

persiste em seu canto

quedo e lasso, a espreguiçar-se

no meio de uma sonolência que não cerra pálpebras,

não abre bocas, não causa arrepios,

apenas espreguiça.

Tédio e samba canção se completam.

Ao lado do tango, insiste.

Num adágio, comove.

À frente de um poema, ainda mais calado, sofisma

a descobrir dobras inusitadas

num mesmo e igual exercício de prolongar-se

numa praia deserta

chamada existência.

De vez em quando,

o tédio se encontra com o álcool.

Nenhuma surpresa.

O que pode sem poder

podendo passa

como o eflúvio etílico que enleva e,

ainda assim, derruba,

as quimeras que evolam.

O ar pesado do desânimo esvai-se

e some, como nuvem

desmanchada numa chuva de imprecisões

anotadas a crayon, na superfície enrugada

de papel crepom

para delírio do artista que despreza

a si mesmo e ao desenho

que retrata aquele que podia ser seu companheiro,

o tédio.

Praia de enseada com vento leve de Outono

a espraiar-se num horizonte louro avermelhado

do fim de mais um dia de ócio.

São Martinho do Porto, a beira mar:

sem sonhos rocambolescos,

conquistas inauditas,

projetos senhoriais.

Apenas o mar a sussurrar, de leve,

entre a montanha e o concreto no horizonte

da cidade que, igualmente, observa

sem jactar-se da similaridade

de si com ele

no verso mudo que busca expressão

mais pura e densa,

delírio do poeta,

vingança do tédio.

 

Borboletas dormem

casulo de Outono

Tédio.

 

 

Primeira versão II

Foureaux, 30.03.22

Há poucos momentos olhei para o céu, de um dos lados da varanda de minha casa e vi nuvens, grandes, densas, volumosas. Levantei-me. Liguei o computador e deixei que as palavras viessem ao meu pensamento, escorrerem pelos dedos sobre o teclado, efeito da visão que me tocou. Não sei dizer como, nem porquê. Apenas, tocou. Daí escrevi isso:

 

De repente,

do lado esquerdo,

formas densas e brancas destacam-se

diante do fundo azul pálido em confronto

com o laranja avermelhado do lado direito,

como todos os dias,

o fim.

Formas oblíquas e volumosas

a desvelar saudades de mim

em perdidas quimeras aglomeradas

e soltas, 

envoltas em inconsútil véu

ao léu

mesmo com a pobreza das rimas.

Saudades.

 

O que fazer com esse tipo de palavra

que inutilmente se utilizam ara nada

um vazio sonoro que retumba, 

oco?

O que fazer com a ideia

volátil fumaça a esgarçar-se leve

como floco de neve

gris?

O que fazer?

 

Se, ao menos, pudesse, ou, antes, soubesse

dizer o que aqui dentro vai corroendo

silenciosa e temerariamente

o que não é possível dizer

porque dividendo

das experiências que já não há?

O invisível é, agora, a marca:

não mais corpos musculosos,

não mais curvas harmoniosas

não mais gíria atenta,

não mais chavões instigantes,

não mais estilo tribal,

não mais lugar destacado,

não mais... nada.

Invisível é o que o tempo produz.

 

Na multidão,

de olhar esgazeado por não entender

a própria invisibilidade, 

o poeta pensa, com saudade de si mesmo,

pensa

e depois escreve, não o que pensa,

mas o que restou da experiência não falada

não escrita, dividendo inesperado,

ainda que anunciado.

 

Se o desejo não arrefece,

seu espaço míngua, involuntariamente.

Míngua, como a lua sazonal,

repetitiva como a constatação do mesmo,

sensual,

que instiga a febre fria

em tremores paralisados pelo tônus desgastado

da pele que um dia, num frêmito,

atraiu não apenas olhares cheiro se esvai, ou melhor,

é trocado.

O gosto se apura, ainda que difícil.

O gesto paralisa o pensamento

e o olhar do poeta circunvaga alhures

por horizontes alheios à procura,

de quê,

nem mesmo ele sabe, mas procura.

Depois escreve.