Março 08, 2024
Foureaux
Há uma ocorrência na poesia, como processo cultural, ao qual se pode dar o nome de metalinguagem. Ela pode se dar em vários níveis. Um deles é o discursivo, ou seja, aquele plano do texto que não está em sua materialidade, mas que se percebe a partir da leitura dela mesma. Um exemplo ilustrativo é o poema “À procura da poesia”, de Carlos Drumond de Andrade. Neste poema, o poeta mineiro fala sobre tudo o que não se deve fazer quando se quer fazer poesia. No entanto, tudo o que, no poema, é negado, constitui exatamente a matéria do próprio poeta. Em outras palavras, o poeta usa a poesia para fazer poesia, neste caso, contradizendo uma e outra coisa. Nesta semana, deparei-me com dois poemas em publicações do Instagram. Um deles é de Manuel Bandeira, outro, de Natália Correia, poeta portuguesa (Uso poeta tanto para ele quanto para ela pois se trata de substantivo comum de dois gêneros! Além disso, na minha cabeça, o sufico “-isa” soa como pejorativo, mas isso é idiossincrasia...). Eles são exemplos da tal metalinguagem como menciono acima. Num e noutro caso, os poetas falam de si e de sua poesia para fazer poesia. É lindo! Leiam os poemas e degustam-nos, se assim for o caso!
Defesa do poeta
(Natália Correia)
Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
dou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs em ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
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Testamento
(Manuel Bandeira)
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezai: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino.
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!