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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

Fevereiro 21, 2024

Foureaux

Uma das coisas que podem ser chamadas de “dificuldade” na prática da leitura crítica de obras literárias é a tal de “opinião”. Inescapável realidade que muitos tentam camuflar, desconsiderar e, até, tentar inutilizar. Em vão. Não se escapa dela. Por isso mesmo, não pode haver critério(s) “chamados” de objetivos para avaliações deste universo. Assim é que, ao ler um livro – sobretudo de autor próximo, conhecido, até amigo – a dificuldade aumenta e os tais critérios tidos como objetivos escapam inexoravelmente. A crítica fica, então, adstrita a um circuito de maledicência e/ou bajulação. Não há escapatória. Há algum tempo, deixei de me submeter a tais idiossincrasias, pelo simples fato de estar aposentado, em caráter definitivo. Neste estatuto, livrei-me, de uma vez por todas, da obrigação de agradar a quem quer que seja, submetendo minha “produção” ao parecer alheio, sempre sujeito a outro cariz idiossincrático. Isso tudo se agudiza quando se trata de um livro novo, o primeiro, na carreira de alguém. Nas vamos lá!

O livro se chama Autos da razão. Seu autor: Israel Quirino. Posso dizer que, mesmo em caráter mínimo e superficial, conheço o autor. Acabei de ler seu livro e não me furto ao impulso de escrever algumas linhas sobre a obra. A edição é austera. Capa simples, mostrando um par de mãos em fundo rosa pálido, champagne, diriam alguns. Ao observar a capa, lembrei-me de uma das disciplinas cursadas no Mestrado – “Fundamentos de Literatura Comparada” – para a qual escolhi, como tema da monografia de conclusão da disciplina, a Titulologia. Capítulo dos pródromos da Literatura Comparada no Ocidente, a Titulologia, como está no vocábulo estuda os títulos na perspectiva que caracteriza a própria disciplina: o comparativismo. As relações entre biografia autorial e título, entre tema e título, entre capa e título, entre assunto e título, entre contexto e título, etc. No fundo, como a própria disciplina de que faz parte, a Titulologia caracteriza-se por ter caráter especulativo e essencialmente teórico. Naquela altura, analisei um romance de Júlio Ribeiro, A carne, cuja capa apresentava um suculento filé, descansando sobre uma almofada de adamascado oriental carmim, enfeitado por grelos dourados. Foi um trabalho irônico e, por que não dizer, iconoclasta. Não vou repetir a dose aqui. A lembrança se justifica pois não encontrei relação plausível entre a ilustração da capa e o conteúdo do livro. Atenção: isto não é um defeito, nem uma qualidade. É, apenas e somente, a conclusão de um leitor que se quer atento e curioso. Punto i basta.

O relato ficcional – ainda que me senti tentado a relacionar certas passagens à traços de autobiografia – se desenvolve a partir das elucubrações de um protagonista que é responsável por sua própria narração. Et voilá: é um juiz. O autor é advogado. Uma coisa pode levar a outra, mas não “advogo” este direito para a leitura que fiz. No entanto, não quis deixar escapar a oportunidade da menção. Interessantemente, o livro é composto de seis capítulos. O detalhe poderia passar batido, não fosse o fato de o autor fazer parte ativa de um movimento cultural em Mariana-MG, cidade onde vive e atua, que tem um ícone identitário, a aldravia. Poema formado por seis versos univocabulares. A ideia mater desta forma poética é suscitar o leitor a construir o sentido do poema, dando vazão a um impulso metonímico provocado e sustentado pela linguagem poética. esta é a marca identitária deste poema e, por extensão, do movimento em cujo seio foi forjado. O número seis, portanto, não pode ser tomado apenas como marco instrumental de organização textual. Como leitor, aproveito o indício para estabelecer correlação entre o conteúdo ficcional do texto narrativo e o contexto a que se subscreve. Isso pode render leituras mais instigantes, suponho, do que a minha própria.

O título remete a uma forma literária em prosa ou verso que remonta aos séculos XV e XVI, notadamente a Gil Vicente, prócer da Literatura Portuguesa e, por extensão, da Literatura Brasileira. No entanto, para além do fato de não ser escrito em versos, os Autos da razão não deixam de contemplar um dos aspectos presentes na produção de Gil Vicente: o caráter moral de seus escritos, sempre voltados a questões de ordem ética (religiosa, mais acertadamente). No caso do escritor mineiro, o dilema pelo qual passa o juiz que protagoniza a narrativa rende eluvubrações de variado cariz, proporcionando ao leitor momentos de reflexão muito instigantes. É de se notar que, em certos passos do relato, a exaração de temas, questões e problemas jurídicos, enchem páginas e páginas, o que pode levar algum leitor a experimentar o tédio. Isso não é regra, mas é notável. Leio isto como exercício apaixonado de um profissional que transcende o tratado, na pena da ficção, não para demonstrar erudição – o que seria um pecado mortal –, mas para ilustrar de forma veemente – conseguindo, assim, mais verossimilhança no e para o relato que apresenta – as circunstâncias po quais passa o protagonista em sua sendo profissional, ética e, até espiritual. Os dramas vividos pelo juiz, no desenvolvimento do processo em que está envolvido, alimenta-se das dúvidas e apreensões que surgem na relação com a ré. Neste sentido, no embate com sua esposa, a dúvida e a angústia marcam o pensamento do narrador que se apresenta frágil diante da realidade acachapante que vai se criando ao longo do desenvolvimento do relato.

Texto de redação quase suntuosa, o relato traz para a cena ficcional, um universo já explorado em outro diapasão, o do suspense. Este não é o caso aqui, por inútil. Quer me parecer – é bom lembrar que sou apenas um leitor e, assim, não cabe a mim determinar o que se passou (ou não) na cabeça do autor para escrever isto ou aquilo em sua obra – a narrativa busca desenhar um percurso subjetivo em seu constante movimento de busca de esclarecimento, ou de uma verdade que escapa nas fímbrias de qualquer discurso, como é o caso do Direito e, por que não, da Literatura também.

Parece que consegui vencer certas dificuldades referidas no começo. Li o livro. Falei sobre ele. Implicitamente, fiz um convite. E não precisei nem bajular, nem condenar quem quer que seja, Alea jacta est!

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Dezembro 13, 2023

Foureaux


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Conta a lenda que ao sair de seu retiro, feito depois do longo período de recuperação, fruto de suas leituras, Inácio de Loyola caminhou de volta a sua casa quando se deparou com um riacho. Nele, percebeu um brilho intenso. Meteu a mão na água, mas o brilho desapareceu. Tentava pegar a pedra que refletia o brilho. Debalde. Toda vez que tentava, o mesmo resultado: o lodo do riacho encobria o brilho. Tocado, então, pelo Espírito Santo, Inácio entendeu o que significava aquilo. O brilho era para ser contemplado, não, tocado. O nome do riacho é Cardoner. A passagem da biografia do Santo recebeu o nome de “Visão do Cardoner”. Salvo engano meu, é este o título que aparece na Autobiografia de Inácio. Esta é a minha visão – mantida pela memória de quase trinta anos desde a experiência jesuítica em Campinas. Claro está que ela responde ao ditado popular: quem conta um conto, aumenta um ponto. Trago esta passagem aqui para falar do carisma da Companhia de Jesus: contemplatio agendo, em tradução livre: contemplação nação. Não vou falar de Teologia, mas a referência é necessária para dar início à minha tergiversação sobre um filme que vi. O ato de vê-lo, no momento mesmo em que o vi, é expressão, imagino, do que se pode sentir quando se dá espaço para a vivência desse carisma. Talvez, em outras palavras, seja uma forma de tentar entender a revelação que 

Inácio, o santo, teve à beira do Cardoner. Essa iluminação causou-lhe “consolação, com certeza – pata usar um termo inaciano muito caro. Creio que senti-me como santo, quando da revelação à beira do Cardoner: consolado. É preciso esclarecer que o sentido desse adjetivo aqui, não é o corriqueiro, mais usual, senão o de completo, satisfeito, para além de maravilhado, feliz. Revelação. Esta é a palavra-chave aqui! Foi assim que me senti, pari passu, ao ver o filme, que não tem nada de extraordinário, a não ser pelo fato de que vai direto ao ponto, sem firulas. Trata-se de Nuovo Olimpo, de Ferzan Özpetek (2023). Não sou cineasta, nem teórico de cinema, apenas gosto de ver filmes. Assim, tenho a impressão de que o orçamento não foi gigantesco o que se nota pela produção que tem ares de modesta. Os atores são absolutamente desconhecidos do “meio”. São todos italianos. O filme se passa em Roma, se não me engano, nos anos 70 e conta a história de dois homens que se conhecem, se apaixonam, instantaneamente e t6em suas vidas atravessada por circunstâncias fora de seu próprio controle. O que me chamou a atenção é o fato de que o filme é romântico até a raiz dos cabelos (dos atores), mas não tem nada de piegas e muito menos estereotipado. Bem...a não se pelo fato de que há um “casamento” entre dois homens – um deles, um dos protagonistas da fita – e, por outro lado, o fato de o encontro se dar num cinema de pegação – quem quiser que vá procurar o que significa isso. Declino do direito de explicar o que seja... Fora isso, não há do que reclamar. A história se desenvolve leve, bem articulada, sem exageros, nem maneirismos, muito menos panfletagem. Esta é uma das mais fortes qualidades do filme: ele não serve de plataforma para militância. Seu discurso é pura e simplesmente estético, obviamente eivado de “realismo” sociopolítico, mas sem o viés de defender pautas e ou apoiar movimentos. A impressão que tenho é de que o diretor quis, simplesmente, contar sua história (Autobriográfica?). Contou-a de modo direto, sincero, bonito e muito, muito comovente. Está na Netflix. Vê quem quer. Vi e gostei. Foi uma experiência balsâmica no quadro atual da filmografia atual, diuturnamente preocupada em defender isso ou aqui, em “lacrar”, em “cancelar pessoas, reputações, tradições. Uma chatice. O filme é um oásis no deserto em que vem se transformando o cinema mundial.

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Setembro 28, 2022

Foureaux

Assim, simples. Não seria uma história. Não de fato. Poderia ser, mas não sei. Não estou seguro se faria sentido se fosse mesmo uma história. O homem andaria muito, observando o sol, o vento, o céu. Sentiria o vento e a textura da terra em que pisa. Tudo com muita calma e prazer. Sim, prazer. Não seria possível imaginar esse homem sem prazer. Em todos os sentidos. Espero que isso venha a ficar claro. Pois então. O homem anda, por dias a fio, encontra lugares de que gosta. O ângulo da luminosidade. Os acidentes geográficos que pode identificar dali. Se for do alto de uma falésia, o mar seria outro ponto de interesse. Não importa. O que vale mesmo é saber que antes de mais nada ele anda, muto. E para sem cálculo, sem previsão. Para quando sente que deve parar e quando sente que o lugar em que está é suficiente para fazer o que ele tem que fazer. Sim. Ele faz porque tem que fazer. Claro que ele gosta, mas tem que fazer. O senso de obrigação é atávico e ele não sabe explicar por quê. As pessoas perguntam coisas a respeito. Perguntas soltas, às vezes desarticuladas. Ele sabe que todos querem saber o que ele também quer, e não sabe. Ainda. Acredita que com o resultado do que faz seja possível encontrar uma resposta. Ou não. Será que importa mesmo encontrar a resposta? Ele se pergunta, sempre, mas continua. Então... ele caminha. Senta-se e começa os eu trabalho. Aproveita as tonalidades que a luz do sol ou sua ausência oferece, à sua vista, à sua sensibilidade. Se alguém perguntar como é que sabe que está na hora e fazer o que gosta de fazer, ele, sem dúvida, responderá que é incapaz de dizer. Só sabe que percebe que a hora é aquela. Pronto. Ele começa a fazer. O senhor José começa a fazer. Não sabe ainda como vai continuar o que começou, mas vai fazer. Sentado, olhando para o nada, lembra-se do sonho. As mesmas putas. A cidade escura, úmida, em ruínas. As mesmas putas. O ônibus cheio de gente que passa rente à parede das casas. As mesmas putas. As ruas largar que dão em avenidas largas que são conhecidas, mas levam para a rua das putas, as mesmas putas. O ar fétido, umidade excessiva, fumaça, casas em ruínas, sujeira. As mesmas putas. O senhor José não sabia como se livrar das putas. Um incômodo com o qual, dizia sempre, estava cansado de lidar. Não sabia mais o que fazer. Aproveitar os flashes que tinha dos sonhos que sempre se repetiam. Pode ser uma ideia interessante. Não via maneira de se livrar das putas. Foi quando teve a ideia de começar o que começou a fazer. Não falou nada com Zuleica Sueli, mas tinha certeza de que, a certa altura, teria que contar pra ela. Muito curiosa. Boa pessoa, mas muito curiosa. Gostava de se pintar e o Senhor José não se incomodava. Tinha pena, na verdade. Sabia que Zuleica não era mais tão jovem e pensava que o exagero da pintura na cara só fazia tornar mais patética a situação de sua amiga. O senhor José era uma boa pessoa, um bom amigo e, de fato, não poderia ter a mais pálida ideia do que viria a acontecer depois que contasse para Zuleica o que iria fazer. Mas estava decidido. Pronto. Era hora de dormir!

Setembro 26, 2022

Foureaux

No romance que tenho tentado escrever, a duras penas, Otacílio Piffio é o pseudônimo de um autor que escreve um romance intitulado O útimo d desejo de Otacílio Piffio. Ainda não sei que continuidade vou dar aos três trechos que já escrevi. Vasculhando os arquivos do computador, encontrei o texto que trago hoje e que resolvi inserir no romance. Vai ser parte de uma digressão que o protagonista do romance "escrito", no romance que eu escrevo (Otacílio Piffio), vai fazer diante de uma situação, digamos inusitada. Segue o trecho:

"Não quero a mirada da mediocridade a obscurecer os momentos de lucidez que, porventura, venham a me inundar a alma. Não mais ter que aguentar as caras tortas de quem acredita que um poema vale menos, bem menos, que tudo que alguém pode dizer sobre ele. Mesmo quem jamais “leu” o poema como seria de esperar. A dispensa do poema não é garantia de melhor abordagem teórica ou crítica ou analítica. Os detalhes de um poema contam. A discussão começa por conta da dúvida sobre o “excessivo” uso de vírgulas ou de pronomes relativos na composição de seu poema. Foi “decretado”, antes de tudo começar, que a biografia do poeta é dispensável, por foça de sua influência sobre o entendimento da “mensagem” do poema. Comecei a rir. Daí, um salto para a circunscrição do poeta e de seu poema na “série histórica” da literatura nacional à qual pertence, sem esquecer, é claro, o problema dos gêneros, subgêneros tipos textuais e quejandos que a poética – a de Dilthey ou a de Hegel, bem entendido –, exigem como conditio sine qua non. Eles não sabiam o significado da expressão, assim como desconheciam o bom uso da mesóclise. Patético."

Agosto 15, 2022

Foureaux

Pensei num nome exótico. Escrevi as linhas que seguem. Ainda não sei o que vou fazer com esta personagem. Não tenho certeza se ela vai fazer parte da trama, se vai ter continuidade, se, de alguma forma, vai ter alguma relevância. Só gostei do nome que inventei. Bem esquisito e sonoro. Era exatamente o que eu queria. Mas o que será que vai se passar começa? Que papel vai desempenhar? Aceito sugestões...

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Zuleica Sueli chegou logo à delegacia. Trazia uma caixa colorida com as iniciais OP. Dentro da caixa havia 36 cartões postais. Dois cachos de cabelo, umas flores secas. Fitas desbotadas e uma caneca antiga, daquelas que precisavam de tinteiro. Sua irmã, a camareira do hotel, não sabia daquela caixa. Ficou intrigada quando Zuleica comentou sobre ela. O delegado fez algumas perguntas. Estava calmo e atento às respostas. Zuleica Sueli parecia um pouco incomodada. Não estava à vontade no meio de três homens. A irmão advertira. Cada um dos investigadores fazia seu trabalho. O delegado assim o providenciou. Insistiu que Zuleica Sueli ficasse tranquila. Fez mais algumas perguntas e dispensou a moça. Os rapazes continuavam seu trabalho e o delegado começou a mexer na caixa. As cartas estavam amarradas com um barbante grosseiro. Não desfez o pacote, ainda que sua curiosidade assim o quisesse. Chamou o escrivão e fez o relatório da entrevista com Zuleica Sueli. Guardou os papeis na pasta do inquérito e mandou guardar a caixa no depósito de evidências, no porão. O rapaz da limpeza observou tudo. Calado e tímido, como sempre foi, observava enquanto fazia seu trabalho. Lembrou-se do dia em que foi chamado pelo delegado para depor. Como trabalhava no hotel, apenas três dias na semana, conseguiu que o delegado o contratasse para a limpeza nos outros dias. Um dinheiro a mais não faria mal. O delegado o chamou e perguntou se ele conhecia Zuleica Sueli. Disse que a conhecia da casa da camareira, vizinha à sua. Ela vinha visitar a irmã de vez em quando. O delegado perguntou se ele sabia se Zuleica Sueli conhecia o morto. Não sabia. Não fazia ideia. Nunca a vira no hotel, nem em outro lugar. Apenas a vira na casa da camareira. Pediu licença para terminar seu serviço e saiu. O delegado fez um telefonema, pegou o casaco e saiu. A delegacia ficou calma e silenciosa. Zuleica Sueli, chegando em casa, telefonou para a irmã e contou o que se passou na delegacia. Disse que tinha olhado dentro da caixa e lido as cartas. A camareira não gostou e repreendeu a irmã. Que não devia ter feito aquilo. Que estava errado, mas ficou curiosa sobre o conteúdo das cartas. Conversaram durante muito tempo. Já era tarde quando Zuleica Sueli foi dormir. Os cabelos presos por uma touca de meia. O corpanzil branco esparramado na cama. O arfar de quem fuma muito. Na rua, o silêncio de sempre. Zuleica Sueli fez suas orações, cobriu-se só com o lençol, fazia muito calor. Custou a dormir. Uma sirene atravessou a noite como de hábito. Zuleica Sueli não acordou.

Julho 19, 2022

Foureaux

Um projeto que parece começar a dar seus primeiros passos. Já há dois capítulos. Propus uma participação de quem os lessem. Somente duas pessoas se animaram a participar. desisti da ideia. Hoje, do nada, comecei a escrever o que, até agora, é o terceiro capítulo. Vamos ver até quando se vai...

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Não foi difícil. Na verdade, nunca era difícil. Era de conhecimento de todos ali, mesmo que não se falasse abertamente sobre o assunto. Não foi mesmo difícil. Bastou elaborar uma pequena carta convite. Duas conferências em cinco dias. O logo tipo da universidade era facilmente encontrado na web. A assinatura não precisaria ser reconhecida. Ninguém haveria de duvidar da procedência dela. Ademais, ninguém conhecida a que convidava. Uma professora destacada em seu meio: Arqueologia e História da arte. Contrato com uma universidade de renome e atuação em duas outras, como colaboradora. Autora de trabalhos premiados pela própria presidência da república. Uma mulher brilhante, ainda que simples, de uma honestidade de carmelita e uns olhos azuis simplesmente fascinantes. N1ao foi difícil. Elaborada a carta, bastava apor a assinatura, montar o arquivo em word mesmo e imprimir. Entregar para a secretária com o pedido para inclusão da pauta da próxima assembleia. feito isso, era aguardar – participando, a contragosto, mas participando – da assembleia, para ratificar a autorização de afastamento. Tudo seria resolvido em questão de dias. Não tinha como não dar certo. E deu. Seriam seis dias em terras estrangeiras para deleite dos olhos, do estômago e da memória afetiva. A conquista de novos amigos desde o primeiro olhar, o primeiro contato. Coisa mágica que não se explica. Não cabe explicação. Ou se dá ou não se dá. Por isso a carta. a viagem foi um sucesso. O jantar de aniversário da professora, divertido. Nada causou problema, para ninguém. Muito mais tarde, quando da organização do acerco de Otacílio, é que uma sombra de dúvida apareceu. Coisa pouca. Incômodo pequeno, mas o gerente do hotel ficou intrigado. Tantos anos de convivência. O contato quase diário, sempre à mesma hora, com os hábitos e manias de um morador que não se sabia ilustre. Somente depois do acontecido é que este reconhecimento teve lugar. Entretanto, a dúvida apareceu, exatamente quando era preciso ter muita paciência. O gerente não teve. Saiu aos gritos e o comando das operações ficou desconfiado. Por que tanta nervosia? O que é que incomodava tanto o gerente para ter uma reação assim? Ao conferir os papeis entregues por ele numa caixa grane, de papelão azul, manchada pelo tempo. Tudo se esclareceu. A carta forjada estava lá, um tanto amassada, mas compunha um dossier que, mais trade, serviria de matéria para especulações de outra natureza. O psicanalista contratado, naquela altura ainda não envolvido com aquele homem, fez algumas observações instigantes. Confessou tratar do assunto com seu supervisor e disser que, por duas ou três vezes desconfiou do vizinho da mulher que trabalhava no hotel. A dúvida se desfez. Não havia ligação alguma entre estas três personagens. O drama não sustentava aquele triângulo. De fato, eles jamais se encontraram. Na verdade, dois deles nem sabiam da existência um do outro. Otacílio era um elo invisível, como ficou provado mais tarde. Sua relação com a mulher do hotel era mais que superficial. De mais a mais, ele não se sentia à vontade na presença de mulheres como aquela. Havia algo nela que o incomodava. O olhar, talvez o jeito de mexer a cabeça enquanto falava, ou os movimentos das mãos quando ficava nervosa. Era perceptível. Nada escapa dele. Assim, mantiveram uma relação distante, ainda que cortês – o ambiente em que se encontravam assim o exigia – mas nada além do protocolarmente educado. Da mesma forma, Otacílio não se dava com muitos de seus colegas de trabalho., Sempre tinha que dar explicações a terceiros das atividades estranhas, das atitudes condenáveis, de tudo o que eles faziam e que ra sabidamente errado. A carta forjada poderia até ter sido usada como prova de uma evidência que a todo custo os colegas queriam imputar a Otacílio, mas não houve jeito. Tudo isso foi resultado de meses de investigação e pesquisa. O bolsista contratado para a organização do acervo começou por listar todas as obras que estavam no escritório. Como não era bibliotecário, não conseguiu fazer a classificação dos volumes, mas organizou-os em ordem alfabéti ca. Os sobrenomes dos autores foi o critério. Era mais fácil assim. Como o acervo não ia ser consultado por ninguém, até que as pendengas do inventário fossem totalmente resolvidas, o trabalho do bolsista era mais que suficiente. anos depois, quando começou a escrever suas memórias, o bolsista se recordou dos dias que passou trancando naquele minúsculo apartamento na Brigadeiro Luiz Antônio. Não batia sol direito. O apartamento era escuro, com uma divisão péssima, apesar do minúsculos dos cômodos. Dois quartos, uma pequena sala, o banheiro e a cozinha. Como não era usado como moradia, a cozinha não tinha quase nada. Uma cafeteira, a torradeira e algumas xícaras e pequenos pratos, alguns talheres. Coisas suficientes para um café, um lanche rápido. Os livros ocupavam quase toda a sala e um dos quartos. No outro, uma cama de casal de tamanho padrão dividia espaço com uma pequena cômoda de maneira. Peça antiga, de antiquário. Soube-se que herdada da bisavó. Os livros, quase todos, eram de autores portugueses. Havia muitas obras críticas sobre estes autores e uma série de pastas de papelão escuro com páginas soltas e anotações, manuscritas e datilografadas. Este material compunha a versão original do romance que teria sido escrito e apresentado como requisito parcial para a livre docência do escritor. Era seu desejo tornar-se livre docente. Uma forma de escapar das idiossincrasias rasas e maliciosas de colegas mal-intencionados. Com o título, c[cátedra era sua e ninguém mais iria dar palpite em suas atividades. O bolsista não fazia ideia do que aconteceu depois. Como não era da área – estava trabalhando pelo dinheiro e não pela matéria – não se interessou pelo assunto. Fazia oque mandavam fazer e pronto. No fim do mês o valor da bolsa era depositado. Seis meses. Foi um trabalho não muito complicado. Cansativo, talvez, mas nada complicado. Quando do inquérito, anos mais tarde, por conta do corpo encontrado no hotel, o bolsista chegou a se irritar com muitas perguntas a ele feitas. Não entendia o que se passava e não fazia ideia do que tinha acontecido. Depois de organizar o acervo no apartamento da Brigadeiro, jamais voltou àquele lugar. Nunca mais teve contato com a secretária que o contratara na faculdade. Muitos anos tinham se passado. Socorro era o nome dela. Mulher ativa, séria e muito rigorosa. Não admitia conversa fiada em seu setor. Os alunos tinham medo dela. Otacílio era praticamente um amigo. Isso não tinha a menor importância para o bolsista. De fato, queria ir embora. Tinha marcado encontro com o namorado numa padaria em Santa Cecília. Estava atrasado. Ia enfrentar enxames de trabalhadores no metrô. Uma chatice. Tentou responder a todas as perguntas, ainda que de maneira nervosa. Ao fim de quase duas horas e meia, foi dispensado. Estava atrasado. Correu para o metrô. Uma tempestade se anunciava. O ar estava pesado, nuvens carregadas, grossas. Um vento frio começou a soprar. Estava atrasado.

Maio 24, 2022

Foureaux

Otacílio Piffio é o nome do livro que tenho tentado escrever. Já tenho dois capítulos que considero “armados”, um outro que há de se colocar em algum do livro “a ser”. Tentei experimentar, com este livro, uma brincadeira que, parece, não deu certo. Publiquei os dois capítulos, um de cada vez. Propus a quem os lesse que tentassem escrever alguma coisa como uma espécie de interferência na história que os ditos capítulos suscitassem na imaginação de quem os lia. Apenas duas pessoas responderam ativamente à proposta. Disso poderia concluir que tenho apenas dois leitores. O que não corresponde à verdade. Sei disso, por conta de alguns comentários e das “sinalizações” que o “sistema” me envia quando alguém “arte” o que escrevi e publiquei no blogue. Sim, com “e” no final. Escrevo em Língua Portuguesa e me dou o direito de aportuguesar o termo originário da língua do tipo Sam de que gosto muito pouco. É isso. Ainda sem saber para que e por que escrevo - mesmo que especulações, inclusive minhas, mão faltem - escrevi mais esse projeto de capítulo, como acima mencionado. A ver onde é que isso vai dar...

Assim, simples. Não seria uma história. Não de fato. Poderia ser, mas não sei. Não estou seguro se faria sentido se fosse mesmo uma história. O homem andaria muito, observando o sol, o vento, o céu. Sentiria o vento e a textura da terra em que pisa. Tudo com muita calma e prazer. Sim, prazer. Não seria possível imaginar esse homem sem prazer. Em todos os sentidos. Espero que isso venha a ficar claro. Pois então. O homem anda, por dias a fio, encontra lugares de que gosta. O ângulo da luminosidade. Os acidentes geográficos que pode identificar dali. Se for do alto de uma falésia, o mar seria outro ponto de interesse. Não importa. O que vale mesmo é saber que, inicialmente, ele anda, muto. E para sem cálculo, sem previsão. Para quando sente que deve parar e quando sente que o lugar em que está é suficiente para fazer o que ele tem que fazer. Sim. Ele faz porque tem que fazer. Claro que ele gosta, mas tem que fazer. O senso de obrigação é atávico e ele não sabe explicar por quê. As pessoas perguntam coisas a respeito. Perguntas soltas, às vezes desarticuladas. Ele sabe que todos querem saber o que ele também quer, e não sabe. Ainda. Acredita que com o resultado do que faz seja possível encontrar uma resposta. Ou não. Será que importa mesmo encontrar a resposta? Ele se pergunta, sempre, mas continua. Então... ele caminha. Senta-se e começa os eu trabalho. Aproveita as tonalidades que a luz do sol ou sua ausência oferece, à sua vista, à sua sensibilidade. Se alguém perguntar como é que sabe que está na hora e fazer o que gosta de fazer, ele, sem dúvida, responderá que é incapaz de dizer. Só sabe que percebe que a hora é aquela. Pronto. Ele começa a fazer. Na escrita que desenvolver, se lembra de muita coisa que aconteceu ali, onde morou e onde, por força das circunstâncias, veio a estabelecer o que costumam chamar por aí de império. Ele não acreditava nisso. Seu amigo mais chegado, Otacílio, costumava dizer que um império não é mais que um monte de papéis que vão envelhecendo e que, como acúmulo de pó, acabam por se transformar em castelos. Ruínas, na verdade, seria mais preciso., mas o homem não acreditava em seu amigo. O homem apenas sabia que houve um tempo em que se prendia em escolas destinadas ao ensino da Filosofia. Todos que não eram como ele, os tais “aristocratas” discutiam e aprendiam com seus mestres. Era engraçado pensar na existência de uma Academia, como a de Platão; ou o Liceu, como o de Aristóteles e os Jardins de Epicuro que podem ser consideradas antecipações históricas das futuras instituições de educação superior, as universidades. Isto era apenas História. Sim, História, com “h” maiúsculo... É que o homem era muito chato. Assim não fosse, não teria sobrevivido a tudo o que se passou. Até o momento em que o testamento foi descoberto, o tormento foi grande. Com a leitura do documento de Otacílio, ninguém mais teve coragem de duvidar do que quer que seja. Tudo estava muito claro. Isso era o mais importante para o homem. Em suas andanças pela Praça 13 de maio, sempre se lembrava dos dias ensolarados em Itaara, a beira do lago Sangu. Nome estranho. Como caeté. Mata frondosa. Para além de identificar uma tribo indígena em território brasileiro, mais precisamente entre a ilha de Itamaracá, em Pernambuco até as margens do rio São Francisco, caeté também identifica. uma das duas seções da mata amazônica, a mata verdadeira das planícies, só inundada nas grandes enchentes. Dizem que pode se escrever/falar caaetê – que, até prova em contrário, é a forma “original” da palavra. Otacílio acreditava que a origem está no tupi kaá eté. O homem não sabia o significado disso na língua indígena. Um fato notório é que foi essa tribo, a dos caetés, que devorou o famoso bispo Sardinha. No século XVI, Mem de Sá determinou que fossem todos escravizados. Triste fim... E o nome dele não era Policarpo. Mata densa, mata virgem. Tudo no mesmo nome. E o homem se deliciava com essas curiosidades de sua própria língua. Gostava de conversar sobre isso com Otacílio. Os outros não se importavam. Agora, sozinho, mais que sozinho, falava consigo mesmo. Para não enlouquecer, escrevia. Dialogava com seus escritos, como se Otacílio estivesse ali. O homem era velho. Inteligente e velho, o homem. Continuava acreditando em tudo que viu e ouviu.

Abril 20, 2022

Foureaux

Acabei de ver um filme interessantíssimo. Seu nome? Berlim, eu te amo (2021, dirigido por Dianna Agron, Massy Tadjedin e Stephanie Martin). No Amazon Prime. A classificação é romance/drama. Não sei se cabe. Também não sei até que ponto essas classificações são, realmente, eficazes. Tenho sérias dúvidas. Tudo muito subjetivo. O que mais me assustou no filme foi ver Mickey Rourke. Levei uns quinze minutos para reconhecê-lo. Quase um monstro. Quem se lembra dele em Nove semanas e meia de amor ou em Coração satânico, não vai acreditar. Vai até se assustar. No entanto, isso é apenas um detalhe, absolutamente dispensável. Ele protagoniza um dos episódios do filme que trata do reencontro (às escuras?) de pai e filha, separados há anos por conta do afastamento dele. Sem saber que é sua filha, o homem leva a moca, sedutora e sexy, para o quarto de hotel em que se hospeda. A moça se oferece a ele, mas imediatamente se arrepende. Vai embora e deixa mensagem no espelho do banheiro: “I forgive you, dad”. Isso. O corriqueiro, o banal, o inesperado, o comum, o repetitivo, o entediante, o revelador, o triste, o trágico, o suspeito, o rancoroso. Todos são sentimentos, experiências, sensações percepções de real que alimentam a narrativa plurifacetada deste filme, muitíssimo interessante. Interessantíssimo. No fundo, como anuncia o título a protagonista é a cidade de Berlim que, ao fim e ao cabo, não “aparece” tanto assim. Alguns relances. Uns tantos recantos em nada e por nada turísticos. O que importa é o que acontece na cidade. de novo, nada de extraordinário. A narrativa do filme é composta por episódios que se cruzam circunstancialmente e apenas assim. As personagens de cada um dos episódios não se relacionam a não ser com seus pares contextualizados no mesmo episódio. A fórmula pode ser batida, mas o resultado é leve, sedutor, comovente. Helen Mirren comparece logo no primeiro episódio. Faz a mão de uma menina que vem de Londres para construir sua “própria” vida e trabalha com menores refugiados. Vejam o filme para ver o que acontece. Há a mocinha que encontra seu grande amor por acaso. A outra que vai tocar violão na praça em que está um anjo (estátua viva). A prostituta que protege um assassino árabe. O suicida que se apaixona pela pessoa mais improvável. O tocante episódio do adolescente, no dia de seu aniversário. Ele pede um beijo enquanto espera o pai que não aparece. O beijo é dado por travesti saído de uma noitada de fim de semana inteiro, depois de brigar com seu namorado. Tudo muito casual, blasé, mas intenso, vertical, incisivo. quase cirúrgico. Não conheço boa parte do elenco. No fundo, o que “acontece” não interessa. “Como” acontece é, me parece, a chave mestra para abrir esta caixa de Pandora do bem. Do bem porque se refere, sempre, à existência humana e suas nuances. A humanidade em suas multifaces coloridas ou nem tanto. As circunstâncias independentes de uma cidade que evoca tanta coisa e não consegue abarcar tudo o que nela se passa. Não é um conto de fadas. Também não é uma cínica declaração de amor a um grande centro metropolitano tão rico, tão controverso, tão complexo. No entanto, a sinceridade com que o roteiro aponta para o fluir dos acontecimentos conta com a competência dos diretores e do desempenho muito consistente dos atores. Todos eles.  Jamais ouvi falar dos diretores. Bem... não sou cinéfilo. Só sei que vi o título na ementa do Amazon prime. Pensei num filme similar de Woody Allen e de outro que vi há muitos anos com Gena Rowlands, já não me lembro o título do filme. Segui o impulso. Vi o filme. Gostei. Vale a pena!

Abril 09, 2022

Foureaux

"Conheci o João Tordo numa tarde de palestra, para unos estrangeiros. Rapaz magrinho, tímido. Gaguejava um pouco, creio que de nervoso. Risonho falava com fluidez, apesar da citada gagueira, que, de fato não o era. Uma tarde agradável com algumas alunas fascinadas por ele. Foi divertido. Já o José Luis Peixoto conheci num auditório, depois de uma conferência. Mais gente. Alunos estrangeiros também, mas havia mais gente. Ele leu trechos de um livro contundente: Morreste-me. Anos depois viria eu a comprar o volume e recordar a emoção funda e sentida naquela tarde estrangeira, como os alunos. O Gonçalo Tavares passou dois dias ali. Os alunos estrangeiros também afluíram com interesse, tanto ä palestra no primeiro dia, quanto à oficina que ministrou no dia seguinte. Rapaz mais retraído, mas sociável. Com olhar atento, de lince, captava nuances no ar, detalhes não lhe escapavam. Um jeitinho de judeu de comédia shakespeariana. Agora, tomando Jack Daniel Honey, lembro-me destas três visitas. Três escritores. Três obra de que sou leitor, na medida do possível, assíduo. E três pessoas que conheci sem ter partilhado momentos, digamos, mais intimamente sociais ou socialmente íntimos: um jantar, uma bebida num botequim, um café, um almoço. Nada. Só as três palestras e uma oficina. Três períodos de dias que ficaram perdidos na memória do tempo.

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Li, em algum lugar dessa imensa rede chamada internete – escrevo com “e” no final porque escrevo em Português. Reuso-me a utilizar o termo ianque. Preguiça. Ojeriza mesmo. – que uma certa professora universitária está oferecendo um curso sobre “Zooliteratura”. No local em que li a informação, há uma foto com alguns dos títulos utilizados pela professora em seu curso oferecido numa plataforma chamada “Corredeira”. Nome sugestivo. Tentei localizar a tal plataforma. Em vão. Dei uma olhada nos títulos que estão na foto publicada por outrem. Inexplicavelmente, não encontrei A revolução dos bichos. Não sei explicar também. Como não se trata do conjunto total da bibliografia – diz o comentário sobre a foto – pode ser que esteja, o livro do Orwell, listado na bibliografia. Talvez obrigatória, do tal curso. Talvez não. Como conheço um pouco a professora, quase arrisco um palpite. O “decoro acadêmico” não me permite externar, aqui, o que realmente penso e o que me veio à cabeça quando li a informação. Membro de uma academia de letras de certo renome – ainda que bastante regional – a professora deve se encontrar num patamar de tal altura intelectual que não vai se importar com estas minhas palavras, de reles professor titular – como ela (ai, um cacófato!) – aposentado – isso não posso dizer a seu respeito. De qualquer modo, veio-me à memória, como no caso dos escritores portugueses, uma cena, passada durante um “concurso público de provas e títulos” em que um dos candidatos não conseguindo terminar de tomar notas bibliográficas durante o prazo estabelecido pela banca, continuou a fazê-lo, com o apanágio da presidente da tal banca. Coincidência das coincidências, a tal presidente da banca tinha sido orientadora desse candidato – atenção não sou adepto desta excrescência estúpida e falaz que atende pelo nome de linguagem neutra, por inexistente, de fato! No mesmo prélio, em outro momento, mais patético, o mesmo candidato dava sua aula no concurso – a famigerada prova didática (parece que aboliram isso e inventaram uma tal de arguição de projeto de pesquisa... vai vendo!) – quando, de repente, começou a saltar na frente da banca, como se fosse um contador de histórias numa feira literária infantil. A mise en scene era para ilustrar a imagem da janela no romance A história do cerco de Lisboa, objeto do ponto da tal prova didática. Bom. Deixa isso pra lá. Isso não interessa a ninguém além de mim mesmo. Mas, convenhamos, o que é que vem essa porra dessa tal de “zooliteratura”? Cheira a cachorrada. Ai! Tenho que me desculpar com quem me ler. Se é que há alguém que me lê."

Março 26, 2022

Foureaux

Pensei no que já tinha escrito antes. Talvez a ideia de um novo romance esteja mesmo começando a se transformar num embrião. Escrevi o que segue abaixo. Do que escrevi primeiro, recebi dois comentários com, digamos, provocações. Tive a ilusão de que receberia mais. Não importa. Segue agora um segundo passo. Quem sabe...

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Em seu depoimento, o funcionário respondeu calmamente a todas as perguntas. Ele não entendia muito bem por que estava ali, porque tinha de responder. O delegado dizia poucas palavras, além das perguntas. A certa altura, uma moça entrou e entregou um envelope amarelo ao delegado. Olhou para o funcionário e franziu o cenho. O funcionário não notou. Continuou cabisbaixo, pensando no tempo que estava perdendo em seu dia de folga. Era para estar no Jardim Zoológico, com seu vizinho, o jardineiro do hotel. Era o que estava combinado desde a semana anterior. Já passava das onze e o interrogatório não acabava. O funcionário estava com fome. Depois de abrir o envelope, o delegado virou-se para o funcionário com ar de espanto. “Você conhece Marizabel Veiga?”. Sim, foi a resposta. “Desde quando?”. O funcionário disse que não se lembrava quando a tinha conhecido. Lembrava-se dela por conta de um passeio ao Horto Florestal, com o jardineiro do hotel, seu vizinho, que a apresentou. Disse que teve a impressão de que o amigo estava namorando a moça. Depois disso, encontraram-se, por acaso, na praça ao lado hotel. “Você manteve contato com ela”? Não. “Nunca mais a viu, depois do encontro da praça?” Não. “Você sabia que ela é irmã de um escritor português, o Tiago Veiga?”. Não. “Na verdade, meia irmã. O pai dela teve um filho do primeiro casamento, o tal Tiago. Parece que nunca conviveram. Marizabel Veiga, logo depois de nascida, veio para o Brasil com a mãe, que se separou do marido. Trabalho numa casa de modas, no centro do Rio de Janeiro. Depois, num restaurante, como garçonete.” No dossiê, que estava no envelope amarelo, havia uma foto desta mulher com a filha, Marizabel. Não havia mais nenhuma informação. “Você sabe onde vive Marizabel Veiga?”. Não. Uma e meia da tarde. O estômago do funcionário roncava. Ele estava envergonhado pois o ronco era alto. Estava irritado por ter perdido o passeio com o amigo, o jardineiro do hotel. O delegado saiu da sala. Não demorou muito. Ao voltar pediu ao funcionário que lesse o seu depoimento e, se estivesse de acordo, o assinasse. Já cansado, um tanto mais irritado, o funcionário chegou em casa. Ligou para seu amigo, o jardineiro. Conversaram por alguns minutos. Combinaram o passeio para a próxima folga, dali a quinze dias. Trocaram impressões sobre o dia. O funcionário fez um lanche e dormiu um pouco, no sofá de sua sala. Acordou com o telefone tocando. Atendeu. Mudo. Desligou e foi ao banheiro. O telefone tocou de novo. Atendeu e, mais uma vez, mudo. Voltou ao banheiro, lavou a cara, penteou os cabelos. Trocou de camisa e saiu. Ao chegar ao portão de sua casa, ainda escutou o telefone tocando mais uma vez. Foi ao cinema. Na saída, passou numa loja de eletrodomésticos e comprou uma secretária eletrônica. Se o telefone tocasse e ficasse mudo, ia identificar o número que chamava pela bina. Isso poderia esclarecer os telefonemas. Fez muito calor durante o dia. Anoiteceu e havia nuvens pesadas no céu. Voltando para casa, o funcionário foi apanhado pela chuva. Não se importou. Continuou caminhando calmamente. Não estava longe de casa. Ao atravessar a última rua antes de chegar em casa, ele viu um carro conhecido cruzando a rua do outro lado. Era o marido da camareira. Estava sozinho. Dirigia devagar. O funcionário acenou. Não foi visto. Estranhou o acontecido, mas se lembrou dos irritantes telefonemas mudos. Ficou satisfeito por ter comprado a secretária eletrônica. Tinha a certeza de identificar quem chamava e não falava nada. A chuva parou, de repente. O céu ficou estrelado, de repente. O funcionário chegou em casa. 

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