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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

05.03.23

Penso em escrever um livro de memórias de uma outra pessoa. Uma personagem, obviamente, inventada. Seu nome, até que eu mude de ideia é Temístocles Praggi. Tem uma história peculiar e deixou de herança, para um amigo muito próximo, a missão de publicar suas memórias com alguns cuidados. Não vou revelar-los aqui e agora, claro! Mas ando pensando muito nisso. vai ser um livrão. Vai aparecer, em algum momento do livro, uma mensagem que recebi de uma editora, dando explicações do porquê não aceitaram meu livro para publicar e acrescentando "dicas" do que fazer para queque livro seja aceito por qualquer editora e tenha sucesso. Na hora que li a mensagem, fiquei dividido entre a raiva mais incontrolável e o acesso de riso que acabou por vencer. Quase engasguei de rir com a capacidade de intromissão e a empáfia de determinar oq ue vai ser necessário para o sucesso do meu livro. Quanta pretensão. Se eu escrever mesmo o livro, quem o ler vai saber do que estou falando. O trecho que segue faz parte dele.

"Não escrevi nada desde o carnaval. Fico pensando nos “conselhos” que o povo de oficina de escrita criativa e os famigerados “editores” – principalmente das editoras pequenas, aquelas que trabalham em “colaboração” – quando dizem que o “bom escritor” tem que escrever todos os dias, que a rotina e o método são essenciais para o sucesso da obra, e coisas equivalentes. Mas o que é mesmo um “bom escritor”? Sempre que penso nisso, me vem à mente um artigo do Antonio Candido intitulado “No raiar de Clarice Lispector”. Se não me equivoco, foi o primeiro artigo escrito sobre a obra da então “nascente” escritora. Até então uma ilustre desconhecida no “mundo das letras”, apesar de trabalhar como jornalista que era. Logo no começo de seu ártico, Antonio Candido afirma: “Por isso tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, escritora até aqui completamente desconhecida para mim. Com efeito este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados forçando-a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério: para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.” Como não estou escrevendo um trabalho acadêmico, mando às favas as famigeradas normas. Note-se que o autor afirma que a escritora é desconhecida “para ele”. Isso quer dizer que ele pode não ter sido o primeiro a ler a obra de Clarice Lispector em questão.  Outra coisa é ao fato de ele considerar “canhestra” a Língua Portuguesa. O que será que ele quis dizer com isso? O que ele afirma sobre ficção acaba por ser suplantado pela opinião de que a escrita de Clarice Lispector é, na leitura que dela faz Antonio Candido, caminho para penetrar ‘em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente”. Essa é a opinião dele. Até prova em contrário, primeiro “julgamento” crítico da obra então nascente de Clarice Lispector. O que eu quero com isso? Nada mais que sublinhar o fato de que se, salvo engano, Antonio Candido foi mesmo o primeiro a explanar sua opinião sobre o romance de Clarice Lispector – no artigo ele faz comparações de cunhos analítico com outros escritores brasileiros, argumentando com ideias acerca de ficção, de série histórica e de “efeito de obra” – tudo o que ele disse pode ser tomado como expressão de uma verdade até então desconhecida. Ou não? Ora, se assim for, chega-se à conclusão de que é possível que seja outra a “verdade” expressa pela obra da escritora. Basta considerar que outras pessoas podem ter lido o mesmo livro que Antonio Candido e que, por conta disso, tiveram outra “impressão” do livro, formaram sobre ele outra opinião. Viu como é fácil desfazer o mito de que a crítica é infalível, ou por outra, como a posição de um crítico é apenas mais uma, sobretudo se outros leitores não tiveram a mesma opinião daquele que primeiro escreveu sobre determinada obra? O critério da “objetividade” se autodestrói e deixa aberta uma ferida que, até hoje, nenhum “teórico” foi capaz de deslindar. Tomara que não venha a existir tal “teórico”, dado que se vier a existir, toda a Literatura, como fenômeno cultural que é, deixará de ter sentido, poderá, mesmo, deixar de existir... Mas isso é apenas a minha opinião."

09.04.22

"Conheci o João Tordo numa tarde de palestra, para unos estrangeiros. Rapaz magrinho, tímido. Gaguejava um pouco, creio que de nervoso. Risonho falava com fluidez, apesar da citada gagueira, que, de fato não o era. Uma tarde agradável com algumas alunas fascinadas por ele. Foi divertido. Já o José Luis Peixoto conheci num auditório, depois de uma conferência. Mais gente. Alunos estrangeiros também, mas havia mais gente. Ele leu trechos de um livro contundente: Morreste-me. Anos depois viria eu a comprar o volume e recordar a emoção funda e sentida naquela tarde estrangeira, como os alunos. O Gonçalo Tavares passou dois dias ali. Os alunos estrangeiros também afluíram com interesse, tanto ä palestra no primeiro dia, quanto à oficina que ministrou no dia seguinte. Rapaz mais retraído, mas sociável. Com olhar atento, de lince, captava nuances no ar, detalhes não lhe escapavam. Um jeitinho de judeu de comédia shakespeariana. Agora, tomando Jack Daniel Honey, lembro-me destas três visitas. Três escritores. Três obra de que sou leitor, na medida do possível, assíduo. E três pessoas que conheci sem ter partilhado momentos, digamos, mais intimamente sociais ou socialmente íntimos: um jantar, uma bebida num botequim, um café, um almoço. Nada. Só as três palestras e uma oficina. Três períodos de dias que ficaram perdidos na memória do tempo.

******

Li, em algum lugar dessa imensa rede chamada internete – escrevo com “e” no final porque escrevo em Português. Reuso-me a utilizar o termo ianque. Preguiça. Ojeriza mesmo. – que uma certa professora universitária está oferecendo um curso sobre “Zooliteratura”. No local em que li a informação, há uma foto com alguns dos títulos utilizados pela professora em seu curso oferecido numa plataforma chamada “Corredeira”. Nome sugestivo. Tentei localizar a tal plataforma. Em vão. Dei uma olhada nos títulos que estão na foto publicada por outrem. Inexplicavelmente, não encontrei A revolução dos bichos. Não sei explicar também. Como não se trata do conjunto total da bibliografia – diz o comentário sobre a foto – pode ser que esteja, o livro do Orwell, listado na bibliografia. Talvez obrigatória, do tal curso. Talvez não. Como conheço um pouco a professora, quase arrisco um palpite. O “decoro acadêmico” não me permite externar, aqui, o que realmente penso e o que me veio à cabeça quando li a informação. Membro de uma academia de letras de certo renome – ainda que bastante regional – a professora deve se encontrar num patamar de tal altura intelectual que não vai se importar com estas minhas palavras, de reles professor titular – como ela (ai, um cacófato!) – aposentado – isso não posso dizer a seu respeito. De qualquer modo, veio-me à memória, como no caso dos escritores portugueses, uma cena, passada durante um “concurso público de provas e títulos” em que um dos candidatos não conseguindo terminar de tomar notas bibliográficas durante o prazo estabelecido pela banca, continuou a fazê-lo, com o apanágio da presidente da tal banca. Coincidência das coincidências, a tal presidente da banca tinha sido orientadora desse candidato – atenção não sou adepto desta excrescência estúpida e falaz que atende pelo nome de linguagem neutra, por inexistente, de fato! No mesmo prélio, em outro momento, mais patético, o mesmo candidato dava sua aula no concurso – a famigerada prova didática (parece que aboliram isso e inventaram uma tal de arguição de projeto de pesquisa... vai vendo!) – quando, de repente, começou a saltar na frente da banca, como se fosse um contador de histórias numa feira literária infantil. A mise en scene era para ilustrar a imagem da janela no romance A história do cerco de Lisboa, objeto do ponto da tal prova didática. Bom. Deixa isso pra lá. Isso não interessa a ninguém além de mim mesmo. Mas, convenhamos, o que é que vem essa porra dessa tal de “zooliteratura”? Cheira a cachorrada. Ai! Tenho que me desculpar com quem me ler. Se é que há alguém que me lê."

15.03.22

Foi numa noite fria de novembro. Ao fim da tarde, o róseo azulado céu que se via da Quinta de Juste forrava o pensamento com uma luzidia corrente que se espraiava sobre a planície a encobrir o rio Cávado com uma névoa matinal que diariamente se vê a esta altura do ano. Os panos envidraçados da casa não escondem um só detalhe da magnífica planície que se espalha e encanta os olhos, o espírito, o tempo. No aconchego de uma sala familiar, Artur chega do trabalho e conversa comigo, seu convidado. trocamos ideias sobre vários assuntos e caímos na Literatura Portuguesa. É quando ele me indica a leitura de um romance de Augusto Abelaira, A cidade das flores. Já conhecia Bolor, do mesmo Augusto Abelaira, que reli semanas depois. Mas não é sobre eles que desejo falar agora. O preâmbulo serve apenas para dar vazão à saudosa memória dos dias que passei ali, naquele recanto do mundo a bafejar beleza e encanto, misturados à História. Esta palavra serve de relé a acionar um circuito de ideias que giram em torno de um núcleo comum: a memória.

Imagine-se encontrar, do nada, um baú. Ou, mesmo, ter um desses em casa, guardado há muito. Quando se abre, o que se encontra pode ser uma surpresa ou uma decepção. Isso vai depender de uma série de variáveis que contribuem pala a volatilidade da ideia que subjaz à situação descrita. Um baú repleto de objetos, fotografias, papéis diversos, recortes, trapos, toda a sorte de coisas que o tempo colecionou através de mãos (e ideias!) humanas. Geralmente, quando se fala em “baú”, logo vem ao pensamento a ideia de passado, de lembranças, de História. Sem registro cronológico de depósitos, ou descrição pormenorizada de conteúdo, um baú é uma espécie de caixa de Pandora, não necessariamente pletora de todos os males. É admissível supor que haja algum mal que possa advir do ato de remexer no conteúdo de um baú. No entanto as descobertas e revelações e, consequentemente, algumas explicações acrescidas de, quem sabe, mais mistérios constituem material muito mais afeito ao exercício involuntário de vasculhar o conteúdo de um baú. Pois.

Há quem afirme que o material exposto nas páginas do livro sofre de desorganização e empilhamento. Fato. Há muita coisa. E há que se enfatizar o termo “muita”. No entanto, isso não chega constituir um defeito do livro. Não. Definitivamente, não! O fato permanece. O acúmulo de informações com que se depara quem folheia as páginas desse luxuoso e elegante livro é notável. De uma riqueza imensurável. Trata-se do volume intitulado Genealogia das coisas: um baú de memórias, de autoria de Alexandra Maria Soares Jorge de Moraes Campello Pereira de Castro. Sua significação, seu sentido, em certa medida, sofrem influência dos olhos e do pensamento de quem olha, de quem repara, de quem folheia o livro. Sempre foi assim. É assim o caso deste livro. Sempre será assim com qualquer livro de similar natureza. Além do mais, sempre vai haver alguém com mais disposição para enumerar defeitos e deslizes, em lugar de fruir o que se oferece como matéria observável. Tenha a forma que tiver. Como contraposição positiva a esta possibilidade, reproduzo as palavras de Ana Cristina Martins, em texto que compõe a abertura do volume:

“Extasiada com a quantidade, variedade e possibilidades de investigação, rapidamente me apercebo da urgência de inventariar todo o conteúdo do baú, antes de o digitalizar e acondicionar corretamente. Nada, porém, que me impeça de começar a estudá-lo, associando-o a outras coisas existentes na casa, submergindo numa estratigrafia de memórias. Certamente que ficarão mais perceptíveis com este meu exercício. Passo antepasso, reunindo e cotejando informação, entrevejo uma verdadeira tríade neste processo: casa, documentos gráficos e outros objetos a examinar de modo estratigráfico. Somente assim conseguirei construir a história de parte da minha família. Apenas deste modo poderei transformar coisas em estórias com rostos, contextos, textos e pretextos. Mas este será outro desafio, quem sabe traduzível em livros que darei à estampa em anos vindouros. Preciso, no entanto, das chaves de outros baús, assim como de estantes das quais retirarei parte das fontes a consultar para alcançar com maior propriedade os seus conteúdos.”

A autora destas palavras é pesquisadora do Instituto de História Contemporânea – Polo da Universidade de Évora UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. Assino embaixo de suas palavras. O material que compõe o livro de Alexandra é por demais rico para ser reduzido por olhares menos dispostos a ver nele mesmo o veio de histórias familiares, lembranças, registros da passagem do tempo a alinhavar subjetividades que, ainda fragmentariamente, conservaram-se protegidas pelo baú. A genealogia, apontada no título do volume, é o resultado desta abordagem estratificante e descritiva a anotar, observar, remarcar e apontar os pontos de costura do fio condutor de uma história que se conta por objetos díspares reunidos e acumulados numa coleção muito peculiar, porque já foi contada pela experiência. A observação da professora aponta para a possibilidade de considerar a coleção, recolhida e apresentada por Alexandra, como fonte da História. Esta, por sua vez, confrontada a cada passo com outras tantas coleções, outros baús, outros registros. Assim, a genealogia se desenvolve e consolida. Assim, o baú, como o das memórias de Alexandra, pode ser considerado fonte documental da tão afamada História.

O formato do livro sugere, mesmo, um álbum de fotografias. A sugestão já circunscreve o perímetro delimitado pela ideia de memória que sustenta a proposta do trabalho realizado e exposto no volume. Neste sentido, Genealogia das coisas: um baú de memórias é um álbum de fotografias, no seu suporte. De novo, alguém pode reclamar de certa falta de roteiro, de caminho a ser seguido para a observação das imagens que se apresentam nas páginas reproduzidas. Repito que isso é uma chatice de quem assim pensa. O fato que permanece é que as páginas e as representações que nela se afiguram impressas compõem um roteiro íntimo, familiar, portanto, livre de qualquer pressuposto técnico ou acadêmico de uma abordagem que ultrapassa seu sentido primário. E este adjetivo, aqui, é muito mais que a equivocada suposição de menos valia do conteúdo. Não. Definitivamente não. Ao colecionador, no caso, a autora do livro, não importa se isso ou aquilo está assim ou assado ou pode induzir o leitor a concluir correta ou equivocadamente sobre o que quer que seja. O que importa é a história que ela conta – ainda que, por vezes, não os saiba ou não o possa saber, por circunstância. Isso é o que importa, ao fim e ao cabo.

O livro de Alexandra é uma experiência sígnica, sensorial, afetiva e mnemônica: um exercício estético de rara beleza. Vale mais que a pena ler. Nesta conclusão, retorno ao início deste texto. Posso, então, falar de A cidade das flores e Bolor. os dois romances de Augusto Abelaira, como dito no início. Fá-lo-ei em seguida.  

 

 

07.02.22

“Um bando de gente suja, suada, malvestida e fedorenta. Um amontoado de gente assim num lugar que mais parecia uma gruta. Eu tinha que passar no meio desse grupo, barulhento. Ofereciam-me carona, cigarro, bebida. Eu sentia nojo e tentava me desvencilhar. Tinha que chegar ao noviciado. O quarto era amplo, claro, limpo. Portas grandes, janelas enormes. Dava de frente para um prédio de apartamentos. A secretária ofereceu-me ingressos para um vernissage à noite. Não o aceitei. Disse que tinha outro compromisso. Voltei para o quarto e procurei por minha mala. Um rapaz muito atencioso veio me atender, enquanto passava pano no chão. Não encontrava minha mala e, ao mesmo tempo, estava no meio da gente suja, vestida e malcheirosa de antes. A secretária sorria. Eu tentava fechar as janelas do quarto. As cortinas (persianas verticais) não funcionava. Não escondiam as miríades de pessoas assentadas na. mureta da rua à espera do ônibus, bem à frente da minha janela. E a secretária sorria. O rapaz passava o pano e não me ajudava. Eu saía andando a procurar a porta do quarto e não encontrava. Passava por lugares que tinha certeza de ter conhecido, mas não os reconhecia. Andada e a gente malcheirosa e malvestida à minha volta. O quarto do noviciado brilhante de tão grande e limpo. a secretária sorrindo. Os lugares conhecidos que eu não reconhecia. Tudo junto, simultâneo. Confuso e claro ao mesmo tempo. São sempre assim os sonhos.

De que adianta anotar o que se lembra dos sonhos? Houve uma vez, um psicanalista disse que isso ajuda na terapia. Tentei, algumas vezes. Cheguei a aproveitar trechos de anotações em romances que escrevi. Na terapia, nunca utilizarei. Não posso dizer se o psicanalista estava certo. Acredito que sim. Não vou procurar um jeito de explicar isso ou de tentar comprovar a hipótese. Penso que não adianta. O tempo passou. O momento passou. O elã passou. E já não faz sentido procurar o sentido, ou não. da afirmação do psicanalista. E assim com todo o resto. Atualmente o que mais me chama a atenção é o fato de eu já vislumbrar uma curva final no caminho. Não a vejo, por suposto. Pressinto-a. Não sei calcular a distância até ela, o tempo que falta, por impossível. Mas sei que está logo ali. Já abro mão de coisas que antes pareciam-me imprescindíveis. A vaidade já não é mais tão edaz. Fica mais fácil admitir que não vale mais a pena que tentar encontrar energia e substância para provar o contrário. Provar para quem? Para mim? Bobagem! Já não tenho necessidade deste tipo de comprovação, de resposta, de explicação. O que tinha de ser foi. E pronto.” (Autor desconhecido)

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