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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

09.10.24

Poesia

Foureaux

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A postagem hoje é resultado do famigerado “seleciona-copia-cola”. Muito prático, na maioria das vezes. Dois poemas. O primeiro não conhecia. Soube dele ao ver um filme de Bille August, O pacto (Pagten, no original), de 2021. Nele, um escritor declama este poema em dinamarquês. Procurei o tio google e ele me mandou a tradução do Manuel Bandeira. O segundo poema, já conhecido (e adorado!), é a mais castiça expressão do que sinto (pretensiosamente) sobre mim mesmo. Não tenho os quilates da poeta, mas sinto-me da mesma forma que ela diz se sentir em seu poema. Os tempos. obscuros e rasos, que nos compete viver têm efeito deletério sobre pequenos prazeres, revividos quando da leitura de poemas como estes dois...

 Anelo

Johann Wolfgang von Goethe

(Tradução de Manuel Bandeira)

 Só aos sábios o reveles,

Pois o vulgo zomba logo:
Quero louvar o vivente
Que aspira à morte no fogo.

Na noite - em que te geraram,
Em que geraste - sentiste,
Se calma a luz que alumiava,
Um desconforto bem triste.

Não sofres ficar nas trevas
Onde a sombra se condensa.
E te fascina o desejo
De comunhão mais intensa.

Não te detêm as distâncias,
Ó mariposa! e nas tardes,
Ávida de luz e chama,
Voas para a luz em que ardes.

Morre e transmuda-te: enquanto
Não cumpres esse destino,
És sobre a terra sombria
Qual sombrio peregrino.

 ************************************************************************

 Motivo

 

Cecília Meireles


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

 



 

06.06.24

Mais alguns dias e...

Foureaux


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No “clima”, lembrei-me deste poema.

 

Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira

 

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Libertinagem (1930)

 

 

08.03.24

Dois poemas

Foureaux

Há uma ocorrência na poesia, como processo cultural, ao qual se pode dar o nome de metalinguagem. Ela pode se dar em vários níveis. Um deles é o discursivo, ou seja, aquele plano do texto que não está em sua materialidade, mas que se percebe a partir da leitura dela mesma. Um exemplo ilustrativo é o poema “À procura da poesia”, de Carlos Drumond de Andrade. Neste poema, o poeta mineiro fala sobre tudo o que não se deve fazer quando se quer fazer poesia. No entanto, tudo o que, no poema, é negado, constitui exatamente a matéria do próprio poeta. Em outras palavras, o poeta usa a poesia para fazer poesia, neste caso, contradizendo uma e outra coisa. Nesta semana, deparei-me com dois poemas em publicações do Instagram. Um deles é de Manuel Bandeira, outro, de Natália Correia, poeta portuguesa (Uso poeta tanto para ele quanto para ela pois se trata de substantivo comum de dois gêneros! Além disso, na minha cabeça, o sufico “-isa” soa como pejorativo, mas isso é idiossincrasia...). Eles são exemplos da tal metalinguagem como menciono acima. Num e noutro caso, os poetas falam de si e de sua poesia para fazer poesia. É lindo! Leiam os poemas e degustam-nos, se assim for o caso!

 

Defesa do poeta

(Natália Correia)

 

Senhores juízes sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto.

 

Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim.

 

Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes.

 

Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei.

 

Senhores professores que pusestes

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição.

 

Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

dou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis.

 

Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além.

 

Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs em ordem?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem?

 

Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa.

 

Sou um instantâneo das coisas

apanhadas em delito de paixão

a raiz quadrada da flor

que espalmais em apertos de mão.

 

Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever.

Ó subalimentados do sonho!

 

A poesia é para comer.

***************************************

Testamento

(Manuel Bandeira)

 

O que não tenho e desejo

É que melhor me enriquece.

Tive uns dinheiros – perdi-os...

Tive amores – esqueci-os.

Mas no maior desespero

Rezai: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.

Por outras terras andei.

Mas o que ficou marcado

No meu olhar fatigado,

Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:

Não tive um filho de meu.

Um filho!... Não foi de jeito...

Mas trago dentro do peito

Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino.

Para arquiteto meu pai.

Foi-se-me um dia a saúde...

Fiz-me arquiteto? Não pude!

Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.

Não faço porque não sei.

Mas num torpedo-suicida

Darei de bom grado a vida

Na luta em que não lutei!

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