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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

29.04.23

O texto que segue não é meu. É de Fernando Pessoa. No entanto, o que ele escreveu poderia, caso eu tivesse tido talento, ter sido por mim escrito. Inveja? Sim! Sem pudor, mas com a compreensão estoica de que não coube a mim tal fardo. Porque é um fardo ser famoso, epítome, referência. Uma carta de amor. Às avessas, diria um. Inútil, diria outro. Não digo nada. Não é ridícula, como quis o mesmo poeta! Apenas sublinho (com maiúsculas) os trechos recitados por certa cantora brasileira. A carta fala por si...

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.

Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas, a maioria da gente – homens ou mulheres – escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

QUANTO A MIM...

O AMOR PASSOU. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.

Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.

PEÇO QUE NÃO FAÇA COMO A GENTE VULGAR, que é sempre reles; QUE NÃO ME VOLTE A CARA QUANDO PASSE POR SI, NEM TENHA DE MIM UMA RECORDAÇÃO EM QUE ENTRE O RANCOR. FIQUEMOS, UM PERANTE O OUTRO, COMO DOIS CONHECIDOS DESDE A INFÂNCIA, QUE SE AMARAM UM POUCO QUANDO MENINOS, E, EMBORA NA VIDA ADULTA SIGAM OUTRAS AFEIÇÕES e outros caminhos, CONSERVAM SEMPRE, NUM ESCANINHO DA ALMA, A MEMÓRIA PROFUNDA DO SEU AMOR ANTIGO E INÚTIL.

Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.

Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando

29/XI/1920

 

04.02.23

Meu primeiro contato com Cleonice Berardinelli, a dona Cleo – se é que isso interessa a mais alguém além de mim mesmo! – foi através de alguns de seus textos. Obviamente, aprendi muito com ela. Ouvia falar dela, muito. A primeira vez que a vi em carne e osso foi durante um congresso da ABRAPLIP – Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa. ainda não era associado. Fui a Niterói para apresentar uma comunicação. Ainda estava naquela fase de juntar papel para engrossar currículo, enquanto o doutoramento não era concluído. Quem abraça a “carreira” do magistério e se aventura pela “pós-graduação” sabe exatamente do que se trata. Pois ela estava lá, fazendo piada com o fato de que a soma dos anos de vida, mais os anos de docência somavam quase dois séculos. Risada geral. Quando a gente é parte da “academia”, a gente ri de cada coisa... Pois bem. Depois, foi em Belo Horizonte, durante um congresso da ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada – nessa altura, eu já era membro. Comecei a acreditar que poderia afazer parte desse grupo de investigadores em iguais condições com os já associados. Ledo engano. Agora que começo a recordar estas passagens, já não me sinto seguro quanto à efetiva sequência cronológica desses episódios. Isso não importa. Não estou escrevendo nenhum documento “acadêmico”! Daí, quando colaborei com a criação de uma revista eletrônica de estudos literários luso-brasileiros, uma das primeiras em solo nacional, fui ao Rio de Janeiro, contando com intermediação de Gilda Santos – a fiel escudeira de dona Cleo – para uma entrevista. O número zero da revista queria homenagear a decana dos estudos portugueses no Brasil. Foi uma tarde mais que agradável, mais que divertida. Que mulher delicada! Que inteligência! Que clareza de raciocínio! Que potência de informação. Com seu tique nervoso característico, ria, falava, pensava e seduzia com olhar, com a palavra. Uma tarde memorável. Ainda houve um ou dois encontros casuais, sem muita intimidade – ela era sempre muito assediada por onde passava. O ponto alto de minha, digamos, relação com dona Cleo, foi durante um congresso da AIL – Associação Internacional dos Lusitanistas. Estava eu, já, um tanto tocado por ter reencontrado uma amiga recente, mas já muito querida. Além disso, estavam ali pessoas que já admirava – José Saramago, João Ubaldo Ribeiro, entre outros. A esse grupo juntou-se Ferreira Gullar, uma surpresa agradável, descoberta divertida – apesar de minha antipatia anterior inexplicada. Que homem divertido. Brilhante. Pois bem. Nesse congresso, numa das conferências matinais – as mais importantes então – adentram o salão nobre da sede da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, na Praia vermelha, de braços dados, Dona Cleonice Berardinelli e Antonio Candido. Foi um delírio. A plateia, de pé, aplaudia entusiasmada. E eu, num cantinho do salão, chorava desbragadamente. Um cortejo de inteligência, importância, referência, para os estudos literários nos estados unidos de brunzundanga. Jamais esquecerei aquela cena. Como jamais esquecerei o sorriso de dona Cleo ao nos despedirmos, depois da entrevista em seu apartamento, no Rio de Janeiro. Houve ainda um último contato. Quando da realização de uma das edições de um projeto “Encontro marcado” – promoção conjunta da IBM com o Banco do Brasil. Fiz-lhe o convite para ir até Santa Maria. De início aceitou, mas dois dias depois declinou por orientação médica. Já estava bastante entrada em anos. Foi assim a minha história com essa mulher interessantíssima, admirável. Já não está, fisicamente. entre nós, mas é presença constante em nossa memória afetiva. Evoé!

31.01.23

Acabei de reler pela terceira ou quarta vez, já perdi a conta, um romance monumental: Os Maias, do Eça de Queiroz. Ou será Queirós? Queiróz? Talvez Queirós? Vai saber. Já estou definitivamente afastado dessas firulas ditas acadêmicas. Isso não tem a menor importância aqui. O que vale mesmo é o “peso” do livro, inclusive, em sentido literal. Longe de mim dizer que o tal “peso” denota desarranjo, dissabor, desprazer ou dificuldade. Longe mesmo! O romance é mesmo monumental e seu peso é de glória, de realização, de importância. É o que vale. Eça, neste romance, dá uma lição de ritmo narrativo. Ouso dizer que mais prazer me causou o tal ritmo em Raquel de Queiroz e em José Lins do Rego. Mas vá lá, no Eça, tem-se outro exemplo cabal de maestria no domínio desta peculiaridade narrativa. O primeiro capítulo (se não me engano um dos mais curtos do romance, se não o mais curto), corre ligeiro e coloca, de imediato, em cena, a estrela principal: Carlos da Maia. A seu lado, um pouco mais adiante, aparece aquela que, para mim é a outra personagem central, literalmente central, do romance: João da Ega. O dramatis personae composto pelas demais figuras narrativas que aparecem é apenas complementar, fundamental, mas complementa a centralidade acachapante de Carlos e João. Que dupla! Numa pincelada ágil, volátil, certeira, a vida de Pedro da Maia, a história de Pedro e o aparecimento de Carlos da Maia no cenário da Lisboa de sempre – sob a pena do escritor português – se dá, aparentemente, num estalo se comparada ao restante dos episódios que vão sendo cirurgicamente costurados pela voz narrativa que tudo sabe, tudo vê, tudo explica. A ironia do autor, obviamente, dá o ar de sua graça. Nessa releitura, não fiz como na imediatamente anterior. Nesta, procurava reencontrar uma cena em particular: Carlos da Maia vai à casa de João da Ega e o encontra a sair do quarto onde está outro rapaz. A cena, se a minha memória não me trai, é rapidíssima e não apresenta – ainda uma vez, aparentemente – nenhum desdobramento inescapável para a economia do romance. Eu digo isso sob a égide de uma perspectiva particular de leitura, o que não invalida as outras, por um lado. Por outro, esta mesma perspectiva intenta descortinar novos horizontes de expectativas para a mesma fortuna crítica do romance. Ocorre que chegou aos meus ouvidos um alerta sobre alguém que se sentiu “curioso” com a referida cena. Devo confessar que quando da penúltima leitura, não consegui localizar a dita cuja. Nesta última, a partir da qual escrevo hoje, isso não estava nas minas intenções subliminares, mas, confesso, foi superado por uma surpresa ainda maior. Mais tarde volto a isto. Pois então, o tal alerta apontava para a cena a que me referi no sentido de estranhar que um autor como Eça pudesse deixar entrever um resquício que fosse de algo fora dos padrões morais e socioculturais de sua época. Esta é a segunda parte do que vou tratar daqui a pouco. Voltando à leitura atual, há de ratificar a extrema acuidade com que Eça monta seu quebra-cabeça ficcional. O enredo fala de um casamento fortuito e circunstancial (Pedro e Maria Monforte, a negreira), sob o olhar embevecido de seu pai (Afonso da Maia). O universo masculino preponderante, apresenta, então, nesta altura da narrativa, um quadro ínfimo de personagens femininas, todas elas acessórias, decorativas. No segundo passo do romance, quando Carlos se forma, e retorna de uma viagem longa para complementar sua “formação, o quadro feminino é acrescido de outras figuras femininas, eu diria, igualmente decorativas, com exceção da Gouvarinho – que colabora para a exposição de tese interessante sobre o comportamento masculino e feminino numa Lisboa em fase de transição sociocultural. Nesta altura, a atenção do leitor se volta para a evolução moral de sua estrela principal, Carlos da Maia, até o momento em que conhece Maria Eduarda. Já estamos no terceiro passo do romance. Nesta fase, a “maturidade” afetiva de Carlos parece estar consolidada. É quando se percebe, subliminarmente, que Carlos não trabalha, mas vive das rendas da família, numa abundância digna dos detalhes concebidos e outorgados pelo autor. Ao chegarmos ao passo final, o desenlace se dá de maneira trágica: a descoberta do incesto, por conta de uma “peripécia” do passado dos Maias, segredo guardado a sete chaves pelo avô, patriarca. Maria Monforte junta-se com um nobre italiano e abandona Pedro, que se mata. Do casamento com o português, nascem dois filhos: Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Na fuga, a adúltera vai para Paris levando a filha. Anos depois, tem outra filha, em Londres, que morre. Deixa chegar aos portugueses a notícia de sua morte, mas sem esclarecer que se trata da segunda filha. Está armado o circo – será que ela fez de propósito? – para os que ficaram em Lisboa. Com o passar do tempo, o fatídico acontece propiciando o encontro e o envolvimento amoroso – sério, profundo – entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda, irmãos, mas ignorantes do fato. O final não poderia ter sido outro. O patriarca morre de desgosto – ainda que o Vilaça assevere que foi consequência de patologia cardíaca – Carlos Eduardo desfaz o compromisso com Maria Eduarda que vai para Paris e... aí é que mora o busílis. A minha surpresa nesta releitura. Se a cena em que João da Ega sai de seu quarto deixando lá um rapaz sob o olhar desconfiado de Carlos é um tanto instigante, o final do romance, ousaria concluir, é definitivo. Como disse antes, as mulheres, neste romance, desempenham papel decorativo. O mundo masculino é o cenário ideal pintado pela pena do escritor português que, através dele, esmiúça as entranhas da sociedade portuguesa, mais uma vez, com finalidade não explícita. Por isso, eu disse, o peso do romance. Ele deixa a cargo do leitor- mas nem tanto – a função de terminar o real sentido de suas insinuações. É nesta perspectiva que me admiro, positivamente com o final do romance. De certa forma, ele comtempla e confirma dúvida que paira quando da cena do quatro do João da Ega. No final do romance, depois de superadas as perdas e resolvidas as questões, digamos, práticas do imbróglio em que se meteu Carlos da Maia, ele e seu “fiel” amigo fazem uma longa viagem juntos. E não há referência à presença fundamental de mulheres, ainda que se possa, com toda tranquilidade, intuir que elas estarão presentes no périplo dos dois amigos. Na volta, quando de uma visita ao ramalhete, lá estão os dois, de novo, sós, um e outro, a combinar pândegas. E o romance acaba com uma corrida para pegar o comboio que os vai levar a mais uma de suas “farras” com os “rapazes” finos da então nobre sociedade portuguesa. Mais não digo...

30.12.22

Há um certo mistério quando alguém escreve um livro e dá a ele o nome de biografia. Parece que cada palavra sobre o biografado se recobre de certa magia, transforma a vida deste num emaranhado de rocambolescas aventuras, todas ela inalcançáveis para o sujeito comum. Isto é apenas aparente. No causo de alguém escrever a própria biografia, esta “magia” se faz sentir com mais impacto. Felizmente, para a salvação de leitores contumazes, isto só acontece quando o autor da referida obra já é, digamos, consagrado. Isto é um alívio, pois entre a fantasia e a mentira, a fronteira é muito tênue, quase esgarçada. Confesso que não sei por que escrevi isto. No entanto, tenho a certeza de que a ideia me veio depois de terminar a leitura de dois livros de um mesmo autor português. Esta leitura segue a de outro escritor brasileiro, a mim muito caro que, de relance, parece-me aproximar-se ficcionalmente do lusitano. Explico-me. Os livros mais recentemente lidos são Apoteose dos mártires e Embora eu seja um velho errante, do Mario Claudio, português. O brasileiro é Graciliano Ramos e a obra, o primeiro volume de Memórias do Cárcere (em releitura). No caso do escritor português, devo dizer que seu último livro, Apoteose dos mártires não me causou tanta impressão quanto a série de outros que dele tenho lido. Confesso que a descoberta deste escritor é relativamente recente e não fiz uma leitura “cronológica” de sua obra para ensejar avaliação mais consistente. De qualquer maneira, o impacto da leitura deste romance foi menos intenso. Outros livros de Mario Claudio me fizeram ficar mesmo arrepiado com coceira no cérebro, admirado com o talento e a sutileza da escrita do autor. Claro está que não estou negando estes aspectos ao livro a que me referi. Muito longe disso. A escrita de Mario Claudio continua a exercer em mim o mesmo fascínio, mas não posso fugir da responsabilidade de dizer que, vamos lá, gostei menos deste último livro por ele escrito. Como diz um amigo querido – ex-aluno e colega, quase titular, agora – o escritor prima por uma de suas marcas: faz referências a uma personagem em alguns momentos de sua narrativa. E, de repente, dedica a esta personagem um capítulo inteiro. Tal capítulo se faz, por via de consequência, imprescindível para a “compreensão” do enredo. Quanto a este aspecto tenho uma observação a fazer. Creio que já a fiz alhures, em outro momento. Trata-se da constatação de que em boa parte de seus romances. Mario Claudio não se preocupa em desenvolver um “enredo” no sentido tradicional do termo. Explico-me. Percebo nos romances do autor que não há, de fato, uma sequência de episódios que se possa chamar de enredo a ensejar uma espécie de “saga”. De fato, como já disse antes, nos romances de Mario Claudio não “acontece” nada. Sua narrativa se compões de reentrâncias que se locupletam e uma ficcionalização a partir das lacunas que se deixam pelo caminho, sobretudo naqueles romances que tratam de “biografias” de pessoas destacadas da cultura portuguesa: GuilherminaAmadeoThiago Veiga, por exemplo. Nestes, o que a biografia não conta – por opção ficcional do autor do relato romanesco – vem apresentado numa sequência complementar de ilações, interferências e até invenções que acabam por dar forma a um relato coeso e impactante. Olhando para o outro lado do Atlântico, no caso de Graciliano Ramos, como referido de início, não se percebe o mesmo “fenômeno” – de fato, não há de “fenomenal” aqui. Diferentemente, o escritor alagoano não deixa escapar um fiapo que seja da dura realidade que vai apresentando num relato entrecortado de observações argutas sobre o comportamento humano o que acaba por desvelar um discurso ético acerca das idiossincrasias do humano que se debate entre intuições, constatações, imaginações e referências. O tom autobiográfico é mascarado por um discurso que beira o fantasioso quando, de fato, não escapa um milímetro sequer da mais acurada observação de um “objeto” que é mais que concreto porque corriqueiro: a vida humana em uma de suas facetas mais chocantes e dolorosas. Entre os dois escritores, em alguma medida, pode-se identificar um traço comum: sua sede por compreender o fenômeno da humanidade em suas mais diversificadas manifestações; seja pelo entendimento das ações e reações em enfrentamento direto e constante com a realidade, no caso de Graciliano Ramos; seja na busca de preencher lacunas “biográficas” que a realidade, ela mesma, não é capaz de preencher em sua fatualidade consequente. Num e noutro caso, fica a certeza de que se trata de dois exemplos acabados e suficientes – em si mesmos – de literatura densa e consequente, preocupada com a matéria com que trabalha em busca de uma expressão que ultrapassa estereótipos de modelos explicativos que não se sustentam. Evoé Literatura!

04.12.22

Maria do Rosário Pedreira é uma portuguesa, editora e poeta que escreveu um livro chamado O Canto do Vento nos Ciprestes. Sem querer, por acaso mesmo, encontrei um poema dela, que faz parte deste livro, declamado por um rapaz. Um vídeo disponibilizado por alguém e que me chegou assim, de repente. Procurei o dito vídeo no Youtube. Não o encontrei, mas deixei reverbar a beleza dos versos da moça. Fiquei tocado. Imediatamente pensei em fazer um exercício poético, uma brincadeira: escrevi versos a partir dos versos de seu poema. O resultado (abaixo, depois do poema original) é o que segue. Ah... ia me esquecendo. Como não conheço o livro da portuguesa, não sei da disposição original dos versos. Assim, a disposição que aqui se apresenta corre por minha conta e risco. 

 

Se partires, não me abraces

 

– a falésia que se encosta uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão das marés 

e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz senão enumerar as próprias feridas

(como a falésia conta as embarcações perdidas nos gritos do mar); 

e o rosto espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.


Se me abraçares, não partas.

 

Ah... faz isso... 

 

deixa de me abraçar e não reclama depois.

Como um muro, o lamento vai escorrer, perene, sem deixar de ser o que sempre foi.

As marés temperam as idas e vindas o desejo, esse que o atormenta tanto.

A cada abraço, sinto que você vibra mais e as ondas rebatem a falésia dos corpos.

Ouço, então, o assovio das nereidas no atol de sonhos.

Veja: medo e prazer estão sempre juntos. Justa medida.

Respiramos o mesmo ar e o vento que sopra já não se distingue

e faz firulas no tempo, por isso não quero mais seu abraço.

O miasma que mancha minha pele, como roupa, envolve a sua vida.

A solidão que me sustenta e ronda aponta o que restou de azul no rosário de dores

(como o muro que reescreve os gemidos como naus bêbadas de saudade);

e o reflexo do luar espelha tristeza como pirilampos de mágoa.

 

Se você for embora, deixa seu abraço.

30.09.22

Vi ontem, por acaso, um vídeo com uma senhora declamando um poema. Era a própria poeta, Ana Luísa Amaral, portuguesa. Encantou-me a maneira como disse o próprio poema. Encantou-me o poema. A Literatura, uma vez mais, atenuando, em minh’alma as agruras do tédio, esse que não me abandona, jamais. Tomara que gostem!

SONETO CIENTÍFICO A FINGIR

 

Dar o mote ao amor. Glosar o tema

tantas vezes que assuste o pensamento.

Se for antigo, seja. Mas é belo

e como a arte: nem útil nem moral.

 

Que me interessa que seja por soneto

em vez de verso ou linha devastada?

O soneto é antigo? Pois que seja:

também o mundo é e ainda existe.

 

Só não vejo vantagens pela rima.

Dir-me-ão que é limite: deixa ser.

Se me dobro demais por ser mulher

(esta rimou, mas foi só por acaso)

 

Se me dobro demais, dizia eu,

não consigo falar-me como devo,

ou seja, na mentira que é o verso,

ou seja, na mentira do que mostro.

 

E se é soneto coxo, não faz mal.

E se não tem tercetos, paciência:

dar o mote ao amor, glosar o tema,

e depois desviar. Isso é ciência!

 

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35

(Folha de Poesia: Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)

12.07.22

O intervalo desta vez foi mais longo. Não sei dizer se proposital ou apenas circunstancial. Arriscaria o palpite de que foi um pouco de cada. Uma mistura. Quem me conhece há está acostumado. Isto posto, segue mais uma série de mal traçadas linhas obre um autor que aprendi a gostar, que conheci pessoalmente e que me agrada muito.

Três são as fases da vida. Três, os momentos do dia. Três, os pedidos que Aladim fez ao gênio da lâmpada maravilhosa. No conto infantil, as maravilhas realizadas pelo “gênio’ encantam e divertem, mas não eixam de, nas entrelinhas, instigar raciocínios outros que podem ser interpretados como nem tão infantis assim. De um jeito ou e outro a ideia de se encontrar um gênio e poder fazer três pedidos continua alimentando a imaginação e as fantasias humanas. Assim é com Octávio, um funcionário público daqueles bem típicos. O nome apresentado leva o “c” porque é criação portuguesa. O autor quis, desse modo, reafirmar sua autonomia com a utilização de letras e outras guirlandas vocabulares que lhe garantem o fluxo e o refluxo de ideias. “Acordos”, “reformas” e quejandos não são capazes de conter o ímpeto criador de quem escreve, como é bem o caso aqui. Octávio C. é o nome “completo” da personagem de um livro encantador, não como o conto de Aladim, mas de uma maneira muto sua, já minha conhecida, assim como de muito mais gente mundo afora. Octávio C. é funcionário público, como disse. Trabalha na Conservatória. É como um cartório de notas e ofícios do lado de cá do grande lago. Octávio C. se relaciona bem com seus colegas de trabalho. Um deles trata das mortes, a outra dos divórcios, um outro dos nascimentos. Ali, na Conservatória, cada um tem seu papel bem desenhado e definido. Faz parte da boa conduta funcional, neste ambiente, cumprimento de suas funções, o reconhecimento das relações entre os diversos registros e, acima de tudo, o respeito à hierarquia funcional. O serviço público parece não mudar muito de um continente para o outro. Otávio C. está apaixonado por uma de suas colegas de trabalho, mas não consegue verbalizar seu sentimento nem tomar uma atitude que o leve a consumar o afeto que alimenta a sua paixão. Depois de se lembrar de uma história contada pelo avô, por conta de situações e circunstâncias que não convém desvelar aqui – o assim chamado spoiler estragaria o prazer de possíveis leitores do romance (porque se trata de um romance) – Octávio C. manuseia, ainda uma vez, uma lamparina dourada que seu avô – que só conversava com ele em inglês, quando conviveram na infância do próprio Octávio. A ilusão dos três pedidos se desfaz, mas em sonhos, o gênio da lâmpada aparece e interage com Octávio C. Obviamente, ele faz seus três pedidos: um mundo sem armas, um mundo sem dinheiro, um mundo sem medo. O gênio, como no conto, da irreversibilidade dos pedidos, no que tange a seus efeitos. Octávio bate o pé. O gênio tenta induzir Octávio C. a pedir alguma coisa que definisse o “estado da arte” de seu sentimento em relação à companheira de trabalho. Nada. Os três pedidos continuam sendo os mesmos e o gênio os concede. As consequências, apresentadas numa narrativa divertida e pitoresca, são as mais inusitadas. Para surpresa de todos, inclusive do próprio Octávio. De novo, abro mão de mais alguns spoilers... O que vale a pena é acompanhar a trilha que Octávio C. apresenta ao leitor, pelas mãos de um narrador que observa e, insidiosamente, se intromete colorindo sua narrativa com humor igualmente colorido e, ainda uma vez pitoresco, as diversas formas que a personagem central vai encontrando de discutir (consigo mesmo e com o gênio a lâmpada) sobre os já referidos efeitos e as inesperadas consequências de seus três pedidos. No fundo, de maneira sutil, mas contundente, o desejo – sob a égide de Freud e Lacan – pontifica o desenrolar desta narrativa que volta a um universo já visitado e soberbamente explorado pelo mesmo autor.  O romance se chama Os três desejos de Octávio C. Seu autor é o já por mim comentado Pedro Eiras, que é professor na Universidade do Porto. Esteve recentemente em São Paulo, participando da Bienal do Livro que, neste ano, homenageou a “terrinha”, lá do outro lado do grande lado: Portugal. Numa entrevista (https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8913.pdf), Pedro Eiras diz: “Olha, para te dizer a verdade, nunca pensei nessas duas palavras – utopia, distopia – ao escrever Os Três Desejos de Octávio..., enfim, os teus Desejos. Digamos que não precisei desses nomes, na altura; mas não quer dizer que não sejam uma boa descrição do que acontece nessas páginas. O vocabulário teórico pode vir mais tarde – quando me transformo em leitor, de mim mesmo, entenda-se. A teoria é ao retardador.”. O trecho pode parecer confuso. Continuará assim se você que me ler não tiver a curiosidade de ir até a fonte, citada entre parênteses) não sem antes, ou depois, ir até o livro mesmo e lê-lo, com prazer, como eu o fiz. Fica o convite.

22.03.22

Numa sequência de um episódio em uma das temporadas da série britânica Outlander, a personagem de Caitriona Balfe faz uma experiência com miolo de pão, na tentativa de descobrir um remédio que seja antibiótico. Ela viaja no tempo, tem conhecimento avançado em relação aos demais que vivem com ela no passado e está preocupada com algumas mortes que poderiam ter sido evitadas com antibióticos. No tempo para o qual ela foi transmutada, é impossível fabricar penicilina e similares, obviamente. Ela busca, então, na sabedoria popular – de fato por um acidente doméstico –, uma solução para o seu problema. No tal episódio, ela vai até a cozinha de sua casa e percebe que o pão está mofado. Há todo um diálogo que não vou reproduzir aqui, por pura preguiça de procurar o episódio a que me refiro. Em síntese, por causa do mofo no pão, ela resolve fazer uma cultura de fungos para produzir o medicamente de que precisa. Bolor, mofo, miasma, hircismo, sito, abolorecimento. Tantas palavras... A primeira é a que me interessa. Bolor. Este é o título do romance que quero comentar, para chegar a outro, A cidade das flores. Ambos foram escritos por Augusto Abelaira e, ainda uma vez, com estes comentários, presto homenagem a um amigo caro, o Artur.

A cidade das flores é de 1959, primeiro romance de Augusto Abelaira. Bolor é de 1968. Começo por ele. Ambos, em alguma medida, expressam a verve experimentalista do autor. Com isso não que o dizer que ele pertença a uma “geração” de escritores     que tenha se notabilizado, na série histórica portuguesa, como experimentalista. Longe disso. O que desejo reafirmar é que a escrita de Abelaira, nestes dois romances é reveladora de uma criatividade que se se desenvolve na experimentação de registro ficcional não usual em seu tempo. Talvez, por alguma influência estrangeira – o espaço deste meu texto é estreito e não pretendo defender uma tese, apenas registrar minhas impressões – o texto de Abelaira, nestes dois livros destaque-se por esta peculiaridade. No primeiro de sua extensa obra, as três personagens – Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo – estão envoltos numa trama afetiva que os faz preconizar uma espécie de triângulo amoroso. A ideia não é minha. Li já não me lembro onde, mas é fato. O diálogo que se desenvolve, numa complexa rede de reviravoltas, intersecções, torneios discursivos e revezes, é denso e marcado pelas impressões trocadas, sobretudo, acerca da relação que entre si mantêm as três personagens. Há quem dê muita importância ao fato de Humberto escrever com cor de tinta azul; Maria dos Remédios Varela Rodrigues, com tinta preta e Aleixo, com tinta roxa. É bom lembrar que num romance, como este de Abelaira, a presença de uma voz narrativa fragmentada não é mero acaso. Há, por certo, uma espécie de objetivo escritural a ser alcançado a partir do uso de tal estratégia. desta forma, a diferenciação de cor da tinta com que escrevem as personagens, em igual media, não é mero detalhe, decoração ou falta de assunto. No entanto, também isso não é meu ponto de fuga aqui. De fato, o que mais desejo registrar é a deliciosa trama que se urde ao longo das anotações de um diário fictício (e ficcional) escrito pelas três personagens do romance. Isso me fez pensar na associação do título do livro com seu similar, na biologia. Por mais que uma casa seja limpa e nova, está sujeita à ação do mofo, que pode aparecer naquele cantinho do ambiente que é mais úmido e escuro, e que pouco se dá atenção. Assim se pode ler a relação estabelecida entre as três personagens do romance. A proliferação do mofo, dizem a sabedoria popular e a ciência, pode causar doenças. No romance, esta particularidade da matéria biológica pode ter seu correlato na troca de impressões que o diário partilhado pelas personagens do rmance de Balaira revela. É como se algo estivesse a envolver Aleixo, Humberto e Maria dos Remédios. Algo que é deles conhecido, mas não nitidamente percebido pelo leitor. Ou, por outrolado, alguma coisa eu o leitor identifica e vai percebendo, ainda que por rastros, índices, ilações, e não se revela aberta, completa e definitivamente. A associação com a ideia do unheimliche freudiano não passa batida por aqui.

Aolado deste romance, aqui, A cidade das flores pode, em certa medida, ser lido como uma espécie de contraponto. Não no sentido dissociativo, mas no de estímulo a um diálogo intertextual que, se não foi proposital, passou muito perto disso. Tal possibilidade conta com o respaldo do tempo que se atravessa entre a publicação de Bolor e de A cidade das flores. Neste, as personagens também se envolvem numa trama de impressões, ilações, comentários e, até desabafos. No entanto, a ausência de um cenário definido, no primeiro, a funcionar como “espaço narrativo” faz do segundo uma espécie de rota a ser seguida em território italiano. Como foi a primeira vez que li este romance, chamou-me a atenção este dado. O romance se passa na Itália. Ou estarei equivocado? O risco existe. Depois de tantas leituras e dando azo ao sedutor ócio criativo, em bem posso ter fantasiado tal circunstâncias. Valho-me do direito a fantasiar. A trama de A cidade das flores se passa na Itália. Isso poderia levar um leitor menos avisado a concluir que o romance foge do caráter nacionalizante que, mesmo nas entrelinhas, por debaixo do pano, está a solicitar sua dose de obediência. Por isso, faço minhas as palavras da Almerinda que, em seu blog (https://almerindaagridoce.blogs.sapo.pt/a-cidade-das-flores-augusto-abelaira-50249) comenta o mesmo romance: “Em 1961, no posfácio à segunda edição de A Cidade das Flores, Augusto Abelaira faz uma reflexão e uma série de perguntas que considerei muito relevantes. Começa assim: “A nova edição de um livro significa que esse livro não morreu”. E mais à frente: “Um livro que se reedita é um livro que se esgotou. Portanto: Quem o esgotou? Quem o leu? E por quê?” (…) “Porque leio eu um romance?” (…) “Independentemente de me ajudar a passar o tempo, a leitura dum romance multiplica em várias direcções a minha pobre vida quotidiana, permitindo-me sonhar.” (…) “Essas histórias… ajudam-me a sair de mim próprio e a descobrir o mundo.” (…) “Os romances preocupam-se com homens vulgares, mais próximos de mim, homens que vivem no meu modesto universo.” (…) “Acontece, porém, que, muitas vezes, buscamos num romance as nossas próprias vidas, as vidas confusas dos nossos irmãos, as nossas preocupações.” (…) “… creio que “A Cidade das Flores” documenta qualquer coisa, a reacção de certos homens a uma praga social – o fascismo; a reacção de certos homens a uma situação social adversa.” (…) “ Homens que não crêem no futuro, ou, melhor: homens que, acreditando no futuro, não têm coragem de viver no presente esse futuro.” (…) “… tenho esperança de que, dentro de cinquenta anos, A cidade das flores já não seja lida. Significará isso que os problemas deste romance já passaram à história e que os homens deram mais um passo no caminho da justiça social.” (…) “Desejaria que A cidade das flores fosse entendida como um livro de quem acredita no progresso, na justiça, na paz, na possibilidade real de os homens serem todos iguais.” (…) “E no entanto, nós, cidadãos deste ano da graça de 1961, sabemos que a História, apesar de tudo, não deu razão ao pessimismo de Fazio. Sabemos que o Hitler não dominou por mil anos. Sabemos que nenhum Hitler dominará por mil anos. A cidade das flores decorre na Itália de Mussolini. Os intervenientes são jovens que vivem em Florença, mais ou menos envolvidos na resistência ao fascismo em ascensão. Augusto Abelaira da geração de escritores da oposição a Salazar a escrever no período negro da censura, transpõe neste romance para o meio cultural, social e literário português dos anos 50 uma realidade paralela, usando personagens doutro país e doutro regime ditatorial com preocupações semelhantes e com ânsias de liberdade. Logo no início do romance, Fazio observa um casal de ingleses que tiram fotografias junto à estátua de David. Enquanto se sente escravo, prisioneiro, ele inveja aqueles turistas que para ele representam a liberdade. Fazio, Soldati, Domenico, Rosabianca, Renatta, Vianello e no outro extremo Briganti adepto das ideias de Mussolini. Nas suas conversas, nos seus encontros, os grandes temas que os preocupam. O que é resistir? O que é colaborar? Até onde se consegue resistir? O que é ser incorruptível? O que é ser honesto? Pode-se ser feliz, quando há alguém que está a sofrer, que está a ser torturado, que está preso? As ideias justas triunfarão? Quanto tempo dura o amor? O que é ser livre? É possível ser-se livre? (...) Senti este romance como intemporal, moderno e actual. No entanto, ao contrário do desejo de Abelaira, de que 50 anos depois daquela 2ª edição do romance ele já não fosse lido, a verdade é que os problemas de que fala o romance não “passaram à história”. A história e o percurso da humanidade estão longe de alcançar a justiça social e os perigos que marcaram o século XX continuam activos e sempre à espera que a democracia baixe as suas bandeiras. Resistir é um imperativo.”Esse trecho diz muito do que eu gostaria de ter dito. O romance de Abelaira, ao “deslocar” o espaço narrativo de Portugal para a Itália não faz mais que dar oportunidade à sua própria ficção de desempenhar seu papel precípuo: ficcionalizar a realidade. Os comentários do Artur, ao recomendar a leitura deste romance, ecoam agora que termino este texto. Uma vez mais, obrigado, amigo!

 

 

 

 

 

26.01.22

Pois é. Dizer que o gajo continua a escrever sob a égide de Paul Auster é exagero. O rapaz evoluiu, no sentido de aprimorar a própria, marca escritural. Estou falando de João Tordo. Em sue último romance, Felicidade, ele se apresenta mais maduro, mais seguro. Um tanto constante em certos procedimentos ficcionais. Mantém a verve. Consegue envolver o leitor de maneira sutil. Há sempre um segredo, um detalhe que escapa. Rastros de experiências outras a indicar caminhos possíveis para o deslinde de situações aparentemente insolúveis. A história se desenrola a partir de um acontecimento ocorrido na adolescência do protagonista. Arrastam-se as consequências por uns 20 ou 30 anos, em minuciosa análise de detalhes que vão compondo um quebra-cabeça a desenhar o “mapa da mina”. Já adianto, sem querer fazer o famigerado spoiler: não se trata de romance policial. Matriz de criação do jovem escritor, o romance policial tem cedido espaço, ao longo de sua obra, para o “tratamento” de questões, eu diria, mais existenciais, com um pouco mais de interesse. Difícil para quem vem se acostumando a ler a mesma coisa com capas diferentes – como sói acontecer com certa parcela do chamado público leitor. este sai perdendo, obviamente. Não sei o que vem por aí. Decerto que outros romances virão sem dúvida. No entanto, fica sempre o suspense para a repetição de uma trilogia. Por isso incluí o nome de João Tordo nestas postagens que partem das elucubrações que fiz sobre o número três. A trilogia a que me refiro inclui O luto de Elias Gro, 2015; O paraíso segundo Lars D., 2015 e O deslumbre de Cecília Fluss, 2017. Aqui, as personagens transitam pelos romances num enredado universo de descobertas, decepções e recorrências. Um bordado delicado e muito arguto que prende a atenção do leitor, se se tornar óbvio ou enfadonho. As recorrências das personagens não são levianas. Ao contrário, adensam a narrativa fazendo com que a ideia de trilogia não pareça assim tão vulgar, óbvia, empobrecida. AO contrário, quando faz uso deste recurso dá-lhe personalidade. Há quem diga que “João Tordo indaga sobre a memória e a decadência do corpo no romance que conclui a trilogia que mudou o rumo da literatura que o escritor produz. No fim, com O Deslumbre de Cecilia Fluss, atam-se todas as pontas soltas. As possíveis.” Assim, “João Tordo fecha a trilogia iniciada em 2015 com O Luto de Elias Gro, partindo de uma fórmula hipotética onde a prova da sua veracidade é secundária face àquilo que a exploração dessa possibilidade lhe permite enquanto escritor: “Memória + Tempo — Decadência = Verdade”. Estas duas considerações não são minhas por óbvio. Quem quiser conferir, basta buscar em https://www.publico.pt/2017/06/25/culturaipsilon/critica/resta-a-loucura-o-que-e-1776162. Vale a pena ler para dizer se tal argumento procede ou não. Mais não digo.

Da surpresa causada pela aparência hard do autor e sua linguagem delicada e diáfana, ficou a certeza de que seria um dos escolhidos para estas postagens. Falo de José Luis Peixoto. Em seu livro Almoço de domingo. Uma vez mais, sua região natural as terras portuguesas acima do Tejo, comparece em todo o seu esplendor de melancolia, um certo ceticismo e muita delicadeza nutrida pelas memórias, marcas da passagem do tempo e percepção da própria pequenez. Poder-se-ia dizer que estas são três linhas de abordagem da escrita de José Luis Peixoto. Cabe a cada leitor decidir. Fico com elas. Bastam para meu horizonte de expectativas de leitor curioso. Gosto do que este autor escreve. Ao contrário do primeiro, aqui, este não se preocupou (ainda) em apresentar a seu público uma trilogia, pensada e realizada como tal. Pelo menos, até onde acompanhei esta procissão... Alhures, encontrei um artigo que faz uma apresentação, a meu ver bastante consistente, do romance. A ver: o “autor de Galveias, que já anteriormente transportara José Saramago para dentro de um romance, Autobiografia, publicado em julho de 2019. Almoço de domingo, ‘sobe um degrau’, porque a personagem retratada ‘ainda está aí’, disse o escritor em entrevista à Lusa. Trata-se da história de um ‘homem de 90 anos, que olha para o seu passado e faz um balanço de vida a partir de episódios significativos da sua história pessoal, que em muitos aspetos tocam a do próprio país (...) contou o escritor. (...) Contudo, a pessoa é subentendida na leitura do texto, pelo percurso que segue, pelo império que cria, pela geografia e pela família em que se insere, a partir das quais tudo parte (...). José Luís Peixoto explica porquê: “do ponto de vista do texto, é um romance e como romance é um exemplo, a personagem é uma personagem, não é um texto histórico não é um texto biográfico”. O romance, de acordo com o escritor, tem como protagonista um sujeito cartorial. Não sabia desse detalhe quando da leitura do romance. Ao saber, fiquei estupefato, mas feliz: não li o romance como uma espécie de ficcionalização de certa biografia. Nada contra. O que me incomoda é “amarrar”
a leitura de qualquer um com esta cordinha tão frágil, porque óbvia. O texto do romance transcende esta tentativa de redução. A linguagem faz jus às premiações recebidas pelo autor. O romance é um convite à reflexão, como soe acontecer, sem deixar de ser mais um exemplo da preciosa e sofisticada poesia de José Luís Peixoto. Poesia esta que se deslinda pela prosa na mancha tipográfica: um universo “poético” anos luz de distância da famigerada prosa poética.  do autor é o que me interessa. A maneira como manipula lembranças, segredos, detalhes e descobertas num ambiente familiar é outro “toque de Midas” de sua ficção. Para conferir basta buscar em: https://visao.sapo.pt/atualidade/cultura/2021-03-09-jose-luis-peixoto-transpos-memorias-de-rui-nabeiro-para-o-papel-e-criou-um-romance/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=jose-luis-peixoto-transpos-memorias-de-rui-nabeiro-para-o-papel-e-criou-um-romance

O terceiro e último passo é falar de um homem extraordinário. Suas atitudes são muito reveladoras da personalíssima prosa que desenvolve. Durante a entrevista que com ele fiz, ainda em 2014, que confirma a hipótese, foi recheada de comentários sutil e incisivos, temperados com uma finíssima ironia e uma mais ainda sofisticada presença de espírito. Um artista! Ao contrário de João Tordo, que construiu “de caso pensado” uma trilogia e de José Luís Peixoto que, até prova em contrário, ainda não se deu a este trabalho, Mario Claudio fez o mesmo que João Tordo e, de brinde, ganhou de seus críticos mais atentos, com acuidade de leitura mais que aguçada, a possibilidade de ver outros títulos de sua vasta produção reunidos em trilogias, “pensadas” pelo olhar destes leitores. Uma espécie de meio do caminho entre o “João” e o “José” que aqui comparecem. Pois. O ponto de fuga aqui é o romance Embora eu seja um velho errante. A sagacidade sofisticada do autor o levou a começar seu romance com uma cena inusitada. Um homem idoso cuida das cutículas enquanto começa a passear por suas memórias. Demais! As três partes do romance se encaixam como peças de uma engrenagem que, simultaneamente, inventa um mundo fantasioso e apropriado para as elucubrações do narrador e instaura a possibilidade de ser, a narrativa, um relato autobiográfico sem preocupação cartorial de sustentar todas as hipóteses de modo documental. Uma maravilha. O procedimento não é original, no conjunto de obra de Mario Claudio. Isso não interfere em nada na procedência do altíssimo grau de narratividade do autor. Marca personalíssima de sua ficção é o preenchimento de lacunas biográficas do sujeito cartorial ficcionalizado – quando é o caso – por elucubrações outras, de natureza genuinamente ficcional. Uma espécie de jogo de esconde-esconde divertidíssimo e sofisticado, muito sofisticado. No caso deste romance, acredito, esta proposta chega a um nível mais que superior e profundo. Neste caso, não recorro a opiniões alheias. Fico com as minhas impressões, ciente de minhas limitações, mas sou um leitor contumaz, digo o que penso sobre o que li. Sobretudo agora, no início da plenitude do ócio criativo em que vivo. Vale muito a leitura!

24.01.22

Os três escritores ainda figuram em minha lista particular de preferências. Conheci pessoalmente os três. Com um deles, ainda mantenho certo contato, ainda que muito esporádico, depois que o visitei em sua residência. Os outros dois, conhecidos em país estrangeiro – meu e deles – são apenas autores de predileção. Não tenho contato. Li muitas obras dos três. Gostaria de ter lido tudo que os três escreveram, mas, como todo mundo sabe, livros portugueses custam uma fortuna nos estados unidos de bruzundanga. Além disso, estou naquela fase de não mais acumular volumes em estantes que só retroalimentam a cadeia alimentar dos fungos, ácaros e insetos, sob a pele diáfana da poeira que o tempo deixa como rastro. Ele passa. Os livros ficam. José Luis Peixoto foi o primeiro que conheci, em Zagreb, como João Tordo, na mesma cidade. Graças às atividades propostas pela Leitora de Português do Instituto Camões, a Sofia Soares, conheci-os. Escutei deles uma conferência. Conversei com eles. Foi muito bom. As três vidas (Quidnovi), lançado em Setembro de 2008 – meses depois de minha chegada a Zagreb – ganhou o Prémio José Saramago no ano seguinte. Gostei muito. Depois dele, foi a vez de ouvir José Luis Peixoto declamar um seu poema, lindo, que faz parte de um dos livros mais impressionantes que já tinha lido até então: Morreste-me, sua primeira obra publicada. Sua figura era completamente antagônica se considerada em comparação com sua escrita, mas isso é chatice minha. Dele, a primeira leitura foi: Nenhum olhar, seu segundo livro de ficção. Eu não sabia, mas minhas visitas à “terrinha”, anos depois, só confirmaram a impressão tocante do Ribatejo que li e depois conheci. Uma fulgurante e melancólica beleza. Anos depois, já em 2014, por conta do pós-doutoramento em Coimbra, vim a conhecer o terceiro, Mario Claudio. Fiz-lhe uma visita e uma entrevista – muito esclarecedora para a pesquisa que então desenvolvia – em sua residência, perto da parada chamada Francos, nos arredores do Porto. Dele, considerando o conjunto de obra, li muito pouco. Mas impressionou-me sobretudo o último: Embora eu fosse um velho errante. Livro impressionante por conta de uma espécie de síntese (se é que isso é possível) que o autor faz de seu próprio modus operandi. O livro é um exercício de criatividade insuperável. Acompanhando o raciocínio da postagem anterior, a primeira de uma série de três, esta aqui enfoca apenas a apresentação mais que genérica, superficial, dos autores que me interessam para a postagem final. Lá, se a preguiça assim o permitir, pretendo discorrer m pouco sobre a leitura que fiz das três últimas obras publicadas por José Luis Peixoto. João Tordo e Mario Claudio. Os três, na verdade, têm um ponto em comum: são portugueses. Quanto à obra de cada um, ah... há controvérsias. E é bom que haja mesmo. A unanimidade, como já dizia Nelson Rodrigues, é mesmo burra. Seus estilos são muito peculiares e abissalmente diferentes. O modo de encarar a Literatura, a mim me parece – como leitor – é outra abissal distância que se impões entre os três. Isso só reafirma a “qualidade” (n`á gosto desta palavra!) dos três: incontestável. Não especulei sobre as plausíveis “influências” em cada caso – isso seria pertinente se eu ainda lecionasse. Como desfruto do ócio criativo permanente, já não me faz falta satisfazer tal especulação. No entanto, a leitura de seus livros me leva a crer que, como todo o resto da população de escritores do planeta, também os três têm lá suas preferências de leitura e, por via de consequência suas influências sintomatizadas. A personalidade também é outro vetor a diferenciar os três, mas isso já não consegue ultrapassar a larga margem da obviedade. Como só conheci mais proximamente o mais velho dos três, Mario Claudio, não posso dizer nada acerca da pessoa dos outros dois. É assim mesmo. Quisera ter todos os livros dos três. Quisera poder ler todos os livros dos três. Quisera ter ânimo para escrever um ensaio sobre cada um deles e publicá-los, individualmente como livros. Melhor ainda, nessa série de “quisera”... seria ser lido. Mas aí já é pedir demais ao destino. Aguardem a terceira e última etapa.

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