Prazeres da releitura

Crônica da ascensão e queda de um alpinista social. Título instigante? Muito! Provável? Sim. Adequado? Penso que não, sobretudo quando se trata de um romance monumental – como tantos outros. Estou a falar de O vermelho e o negro (Le rouge et le noir), do Stendhal. Como ponto de partida, considero o que vem escrito na página da famigerada Wikipedia. Sim, eu a consult0, a consultei e não tenho motivos razoáveis para não a consultar num futuro provável. Se alguém me apresentar tal argumento, sou capaz de abandonar esta prática... Voltando ao que interessa. O verbete da tal Wikipedia diz o seguinte: “Le rouge et le noir (O vermelho e o negro, em francês), com o subtítulo Chronique du XIX siécle (‘Crônica do século XIX’), é um romance histórico psicológico em dois volumes do escritor francês Stendhal, publicado em 1830. Costuma ser citado como o primeiro romance realista, embora imbuído de uma sensibilidade romântica e, diferindo da literatura realista em geral (em especial Balzac), seja econômico nas descrições de ambientes físicos e pessoas, preferindo se aprofundar em seus processos psicológicos, levando ao extremo o foco do narrador onisciente. A ação transcorre na França no tempo da Restauração antes da Revolução de 1830, supostamente entre 1826 e 1830, e trata das tentativas de um jovem de subir na vida, apesar do seu nascimento plebeu, através de uma combinação de talento, trabalho duro, engano e hipocrisia, apenas para encontrar-se traído por suas próprias paixões. (...) O nome da obra é motivo para controvérsias. Discute-se muito a que Stendhal se referia com o ‘vermelho’ e o ‘negro’. Muitos atribuem o negro a cor da batina do herói e o vermelho ao sangue lavado, mas há outras interpretações que também podem ser citadas como a razão para o nome. O que reforça a dúvida é que em certas ocasiões, conclamam que o nome O vermelho e o negro, vem do vermelho da antiga farda vermelha (que depois tornou-se azul-claro) dos franceses e o negro da batina dos padres, demonstrando a principal dúvida de Julien: “revelar-se nobre e ter ascensão rápida e garantida na hierarquia religiosa, ou continuar mundano sob as mesmas circunstâncias na vida militar”. Essa é uma interpretação para a aceitação de um jovem de origem humilde nos meios sociais de maior vulto e influência.” O verbete continua, mas o que me interessa está aqui. Vamos por partes. De cara, uma chatice. Ao afirmar que O vermelho e o negro pode ser considerado ‘o primeiro romance realista, embora imbuído de uma sensibilidade romântica e, diferindo da literatura realista em geral’, eu poderia dizer que isso é uma grandessíssima bobagem. Não é. O fato é que reduzir a leitura de um romance como o de que trato aqui a estes parâmetros ‘classificatórios’ é imperdoável. Claro está que a periodização é importante e desempenha seu papel didático no estudo da Literatura, seja qual for a sua nacionalidade. No entanto, este texto de Stendhal, como tantos outros, transcendem essas mesmas periodizações, ainda que deles sejam feitos reféns por gente rasteira e sem perspectiva. A aproximação com Balzac, irrecorrível, dá vantagem a Stendhal. Reservo-me o direito de ter por Balzac, opinião bem firme: um chato (como tantos outros). O detalhismo dele me cansa, entendia. Há peças memoráveis, por evidente, mas é um chato por conta do citado detalhismo. Além disso, a narrativa de Stendhal se alimenta dos miasmas napoleônicos de que ressente a cultura francesa (será que um dia livrar-se-á dela?). O caráter sociológico de que se reveste o desempenho do protagonista, Julien Sorel, ultrapassa o estreito limite da “crônica social”, como o referido verbete também anuncia. O enredamento de questões sociais, política, econômicas e religiosas formam um primoroso bordado da sociedade francesa coetânea do período recoberto pelo romance. Ba ficção, o escritor francês faz cortes cirúrgicos, notadamente em abcessos de hipocrisia dos quais a mesma sociedade se alimenta e deles se vangloria. Mais um dos paradoxos que a Literatura costuma construir, desvelar e, em muitos casos, demolir. De mais a mais, os envolvimentos amorosos de Julien Sorel escapam galhardamente de armadilhas românticas que tanto notabilizaram outros escritores do mesmo idioma. Ocorre-me, por acaso, Alexandre Dumas, com o seu O conde de monte Cristo. De igual maneira, em outro diapasão, Os miseráveis, de Victor Hugo. A lista é inumerável. De qualquer forma, a releitura deste romance me trouxe uma satisfação enorme. O gosto pela “alta literatura”, para Lembrar Leyla Perrone-Moisés é insaciável e encontra nos famigerados “clássicos” alimento inesgotável. Sei que sou um chato, mas gosto de ler, fazer o quê...!

