Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

Enquete

Foureaux, 06.03.23

Resolvi fazer uma provocação. Uma espécie de pulo no escuro para os que me leem. Abaixo seguem dois poemas “A” e “B”. Não vou dizer quem são os autores. São apenas três perguntinhas:

Qual dos dois mais agrada você?

O que, num, é mais bonito que noutro?

Qual dos dois é o “melhor”?

Adoraria ver as respostas chegando, mas...

***********************************************************

“A”

Já não verei a parede manchada

pelas contínuas investidas da chuva

(torrencial ou não),

e o cartaz vermelho com os preços

do combustível que alimenta os carros

a soltar fumaça

espalhar fulgem

ajudar a manchar as paredes

acompanhando a chuva

(torrencial ou não).

 

Já não verei a velhinha atravessa a rua

devagar

sobraçando sacola de mercado, 

com o necessário para o dia 

(que a carestia é muita!).

Nem verei o menino que vende balas para levar comida pra casa

(o atraso da revolução é grande).

 

Já não verei a menina que cora com o olhar desejoso do frentista,

nem a careta da beata depois da missa das seis.

 

Já não verei quase nada.

 

Tudo vai ser apenas memória.

Será?

E esse dia está para chegar.

 

***********************************************************

“B”

eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.

Livro

Foureaux, 05.03.23

Penso em escrever um livro de memórias de uma outra pessoa. Uma personagem, obviamente, inventada. Seu nome, até que eu mude de ideia é Temístocles Praggi. Tem uma história peculiar e deixou de herança, para um amigo muito próximo, a missão de publicar suas memórias com alguns cuidados. Não vou revelar-los aqui e agora, claro! Mas ando pensando muito nisso. vai ser um livrão. Vai aparecer, em algum momento do livro, uma mensagem que recebi de uma editora, dando explicações do porquê não aceitaram meu livro para publicar e acrescentando "dicas" do que fazer para queque livro seja aceito por qualquer editora e tenha sucesso. Na hora que li a mensagem, fiquei dividido entre a raiva mais incontrolável e o acesso de riso que acabou por vencer. Quase engasguei de rir com a capacidade de intromissão e a empáfia de determinar oq ue vai ser necessário para o sucesso do meu livro. Quanta pretensão. Se eu escrever mesmo o livro, quem o ler vai saber do que estou falando. O trecho que segue faz parte dele.

"Não escrevi nada desde o carnaval. Fico pensando nos “conselhos” que o povo de oficina de escrita criativa e os famigerados “editores” – principalmente das editoras pequenas, aquelas que trabalham em “colaboração” – quando dizem que o “bom escritor” tem que escrever todos os dias, que a rotina e o método são essenciais para o sucesso da obra, e coisas equivalentes. Mas o que é mesmo um “bom escritor”? Sempre que penso nisso, me vem à mente um artigo do Antonio Candido intitulado “No raiar de Clarice Lispector”. Se não me equivoco, foi o primeiro artigo escrito sobre a obra da então “nascente” escritora. Até então uma ilustre desconhecida no “mundo das letras”, apesar de trabalhar como jornalista que era. Logo no começo de seu ártico, Antonio Candido afirma: “Por isso tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, escritora até aqui completamente desconhecida para mim. Com efeito este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados forçando-a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério: para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.” Como não estou escrevendo um trabalho acadêmico, mando às favas as famigeradas normas. Note-se que o autor afirma que a escritora é desconhecida “para ele”. Isso quer dizer que ele pode não ter sido o primeiro a ler a obra de Clarice Lispector em questão.  Outra coisa é ao fato de ele considerar “canhestra” a Língua Portuguesa. O que será que ele quis dizer com isso? O que ele afirma sobre ficção acaba por ser suplantado pela opinião de que a escrita de Clarice Lispector é, na leitura que dela faz Antonio Candido, caminho para penetrar ‘em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente”. Essa é a opinião dele. Até prova em contrário, primeiro “julgamento” crítico da obra então nascente de Clarice Lispector. O que eu quero com isso? Nada mais que sublinhar o fato de que se, salvo engano, Antonio Candido foi mesmo o primeiro a explanar sua opinião sobre o romance de Clarice Lispector – no artigo ele faz comparações de cunhos analítico com outros escritores brasileiros, argumentando com ideias acerca de ficção, de série histórica e de “efeito de obra” – tudo o que ele disse pode ser tomado como expressão de uma verdade até então desconhecida. Ou não? Ora, se assim for, chega-se à conclusão de que é possível que seja outra a “verdade” expressa pela obra da escritora. Basta considerar que outras pessoas podem ter lido o mesmo livro que Antonio Candido e que, por conta disso, tiveram outra “impressão” do livro, formaram sobre ele outra opinião. Viu como é fácil desfazer o mito de que a crítica é infalível, ou por outra, como a posição de um crítico é apenas mais uma, sobretudo se outros leitores não tiveram a mesma opinião daquele que primeiro escreveu sobre determinada obra? O critério da “objetividade” se autodestrói e deixa aberta uma ferida que, até hoje, nenhum “teórico” foi capaz de deslindar. Tomara que não venha a existir tal “teórico”, dado que se vier a existir, toda a Literatura, como fenômeno cultural que é, deixará de ter sentido, poderá, mesmo, deixar de existir... Mas isso é apenas a minha opinião."

Antepenúltimo

Foureaux, 30.12.22

Há um certo mistério quando alguém escreve um livro e dá a ele o nome de biografia. Parece que cada palavra sobre o biografado se recobre de certa magia, transforma a vida deste num emaranhado de rocambolescas aventuras, todas ela inalcançáveis para o sujeito comum. Isto é apenas aparente. No causo de alguém escrever a própria biografia, esta “magia” se faz sentir com mais impacto. Felizmente, para a salvação de leitores contumazes, isto só acontece quando o autor da referida obra já é, digamos, consagrado. Isto é um alívio, pois entre a fantasia e a mentira, a fronteira é muito tênue, quase esgarçada. Confesso que não sei por que escrevi isto. No entanto, tenho a certeza de que a ideia me veio depois de terminar a leitura de dois livros de um mesmo autor português. Esta leitura segue a de outro escritor brasileiro, a mim muito caro que, de relance, parece-me aproximar-se ficcionalmente do lusitano. Explico-me. Os livros mais recentemente lidos são Apoteose dos mártires e Embora eu seja um velho errante, do Mario Claudio, português. O brasileiro é Graciliano Ramos e a obra, o primeiro volume de Memórias do Cárcere (em releitura). No caso do escritor português, devo dizer que seu último livro, Apoteose dos mártires não me causou tanta impressão quanto a série de outros que dele tenho lido. Confesso que a descoberta deste escritor é relativamente recente e não fiz uma leitura “cronológica” de sua obra para ensejar avaliação mais consistente. De qualquer maneira, o impacto da leitura deste romance foi menos intenso. Outros livros de Mario Claudio me fizeram ficar mesmo arrepiado com coceira no cérebro, admirado com o talento e a sutileza da escrita do autor. Claro está que não estou negando estes aspectos ao livro a que me referi. Muito longe disso. A escrita de Mario Claudio continua a exercer em mim o mesmo fascínio, mas não posso fugir da responsabilidade de dizer que, vamos lá, gostei menos deste último livro por ele escrito. Como diz um amigo querido – ex-aluno e colega, quase titular, agora – o escritor prima por uma de suas marcas: faz referências a uma personagem em alguns momentos de sua narrativa. E, de repente, dedica a esta personagem um capítulo inteiro. Tal capítulo se faz, por via de consequência, imprescindível para a “compreensão” do enredo. Quanto a este aspecto tenho uma observação a fazer. Creio que já a fiz alhures, em outro momento. Trata-se da constatação de que em boa parte de seus romances. Mario Claudio não se preocupa em desenvolver um “enredo” no sentido tradicional do termo. Explico-me. Percebo nos romances do autor que não há, de fato, uma sequência de episódios que se possa chamar de enredo a ensejar uma espécie de “saga”. De fato, como já disse antes, nos romances de Mario Claudio não “acontece” nada. Sua narrativa se compões de reentrâncias que se locupletam e uma ficcionalização a partir das lacunas que se deixam pelo caminho, sobretudo naqueles romances que tratam de “biografias” de pessoas destacadas da cultura portuguesa: GuilherminaAmadeoThiago Veiga, por exemplo. Nestes, o que a biografia não conta – por opção ficcional do autor do relato romanesco – vem apresentado numa sequência complementar de ilações, interferências e até invenções que acabam por dar forma a um relato coeso e impactante. Olhando para o outro lado do Atlântico, no caso de Graciliano Ramos, como referido de início, não se percebe o mesmo “fenômeno” – de fato, não há de “fenomenal” aqui. Diferentemente, o escritor alagoano não deixa escapar um fiapo que seja da dura realidade que vai apresentando num relato entrecortado de observações argutas sobre o comportamento humano o que acaba por desvelar um discurso ético acerca das idiossincrasias do humano que se debate entre intuições, constatações, imaginações e referências. O tom autobiográfico é mascarado por um discurso que beira o fantasioso quando, de fato, não escapa um milímetro sequer da mais acurada observação de um “objeto” que é mais que concreto porque corriqueiro: a vida humana em uma de suas facetas mais chocantes e dolorosas. Entre os dois escritores, em alguma medida, pode-se identificar um traço comum: sua sede por compreender o fenômeno da humanidade em suas mais diversificadas manifestações; seja pelo entendimento das ações e reações em enfrentamento direto e constante com a realidade, no caso de Graciliano Ramos; seja na busca de preencher lacunas “biográficas” que a realidade, ela mesma, não é capaz de preencher em sua fatualidade consequente. Num e noutro caso, fica a certeza de que se trata de dois exemplos acabados e suficientes – em si mesmos – de literatura densa e consequente, preocupada com a matéria com que trabalha em busca de uma expressão que ultrapassa estereótipos de modelos explicativos que não se sustentam. Evoé Literatura!

Dário

Foureaux, 17.12.22

Tenho tentado manter um diário. A duras penas, por conta de minha abissal personalidade macunaímica. Neste diário, hoje, registro um fato que me toca, ainda que pouco. A morte de uma escritora. Ficou uma saudade.

Nélida Piñon faleceu agora à tarde, em Lisboa. Quisera eu estar vivendo lá, onde ela vivia, ultimamente. Conheci-a em Santa Maria, ainda nos anos 90, já não sei se 3 ou 4, mas 90... Chatices... Fui apanhá-la no aeroporto da cidade, ao lado da base aérea num final de tarde chato, entediante, em que eu estava pelas tampas num mal humor inexplicável. Hoje, eu penso que já era sintoma de uma crise depressiva que vim a viver por alguns meses depois. Pois. Fui designado para ir apanhá-la no aeroporto. Lá fui. Queria fazer qualquer coisa menos estar ali, esperando por uma senhora desconhecida – então presidente da Academia Brasileira de Letras – que chegava para uma conferência no dia seguinte. Teria que levá-la ao hotel e, quem sabe – como acabou por acontecer – ao restaurante. No dia seguinte, deveria pegá-la no hotel, ainda uma vez, levá-la ao CAL, acompanhá-la ao gabinete da Direção e apresentá-la no “Quinta versão”, auditório do Centro. Fui. Esperei. Ela chegou. Os olhinhos de fuinha, cabelo liso, elegante e simplesmente vestida. Um sorriso rasgado na face. Levei-a ao Itaimbé. Na época, o melhor hotel da cidade. Conversamos animadamente. Até hoje eu não consigo explicar de onde me veio a energia para ficar tão animado com essa conversa entre Camobi e o centro da cidade. Depois, quando chegamos ao Augusto – então, o melhor restaurante da cidade, o mais tradicional, o mais conhecido, hoje, infelizmente, inexistente – passamos uma noite incrível. Tomamos três garrafas de um Pinot Noir, da Aurora. De novo, à época, esta vinícola produzia vinhos mais que excelentes e tinha lançado o Pinot Noir naquele ano. O papo foi mais que animado, divertido. três horas da manhã a deixei à porta do hotel. No dia seguinte, peguei-a, ainda uma vez. Fomos para o “Quinta versão”. Ela fez sua conferência. Foi um sucesso. depois disso, jamais a vi pessoalmente outra vez. Tentei ler dela um de seus primeiros romances: Tebas do meu coração. Não cheguei a terminá-lo. Cheguei a manusear A república dos sonhos, mas não o li. agora, com sua morte, reacendeu-se o desejo de ler sua obra. Será que minha preguiça vai deixar? De qualquer maneira, uma pena, uma tristeza. Mais uma vez que se cala. Uma voz clara, divertida, articulada, densa, ampla. Uma pena. 

Brincadeira

Foureaux, 04.12.22

Maria do Rosário Pedreira é uma portuguesa, editora e poeta que escreveu um livro chamado O Canto do Vento nos Ciprestes. Sem querer, por acaso mesmo, encontrei um poema dela, que faz parte deste livro, declamado por um rapaz. Um vídeo disponibilizado por alguém e que me chegou assim, de repente. Procurei o dito vídeo no Youtube. Não o encontrei, mas deixei reverbar a beleza dos versos da moça. Fiquei tocado. Imediatamente pensei em fazer um exercício poético, uma brincadeira: escrevi versos a partir dos versos de seu poema. O resultado (abaixo, depois do poema original) é o que segue. Ah... ia me esquecendo. Como não conheço o livro da portuguesa, não sei da disposição original dos versos. Assim, a disposição que aqui se apresenta corre por minha conta e risco. 

 

Se partires, não me abraces

 

– a falésia que se encosta uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão das marés 

e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz senão enumerar as próprias feridas

(como a falésia conta as embarcações perdidas nos gritos do mar); 

e o rosto espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.


Se me abraçares, não partas.

 

Ah... faz isso... 

 

deixa de me abraçar e não reclama depois.

Como um muro, o lamento vai escorrer, perene, sem deixar de ser o que sempre foi.

As marés temperam as idas e vindas o desejo, esse que o atormenta tanto.

A cada abraço, sinto que você vibra mais e as ondas rebatem a falésia dos corpos.

Ouço, então, o assovio das nereidas no atol de sonhos.

Veja: medo e prazer estão sempre juntos. Justa medida.

Respiramos o mesmo ar e o vento que sopra já não se distingue

e faz firulas no tempo, por isso não quero mais seu abraço.

O miasma que mancha minha pele, como roupa, envolve a sua vida.

A solidão que me sustenta e ronda aponta o que restou de azul no rosário de dores

(como o muro que reescreve os gemidos como naus bêbadas de saudade);

e o reflexo do luar espelha tristeza como pirilampos de mágoa.

 

Se você for embora, deixa seu abraço.

Adaptação

Foureaux, 25.10.22

Traduzi o poema abaixo de uma língua estrangeira. Adaptei seu conteúdo, com menos explicitude, para não correr riscos. É preciso enxergar, para além de ver...

 

“É proibido          mostrar imagens.

                               pendurar a bandeira do Brasil em qualquer fachada.

                               utilizar fatos históricos em documentários.

                               falar que ele defende a legalização do aborto.

                               afirmar que ele é a favor da liberação das drogas.

                              asseverar que ele pactua coma validade das invasões de terras.

                              confirmar que ele quer a volta de censura.

                              divulgar a sua amizade com ditadores latino-americanos.

                              dizer que há ligação sua com as farc’s.

                              propalar que ele foi condenado.

                              insinuar que ele é ladrão.

                             deduzir que ele se favoreceu de manobras ‘superiores’.

                             rir do fato de que ele tem amigos ‘superiores’ que o protegem.

                             relacioná-lo à morte daquele outro.

                             ligá-lo àquele ‘cabo eleitoral’ detido.

                             associar sua pessoa ao pê com dois cês.

                            comentar sobre o ‘lobo solitário’ internado.

                            fazer menção ao atentado de seu colega.

                            admirar-se de sua desenvoltura no ‘complexo’.

                            rir do fato de um hacker fez o que quis e nada aconteceu com ele.

                            admirar-se com o fato de que o “sigilo” a tudo encobre.

                           ‘lamentar’ a perda (provocada) de todos os dados da invasão.

                           sugerir a interferência de um dos supremos na famigerada auditoria.

                           comentar sobre a vulnerabilidade de certas máquinas.

                           duvidar da segurança dessas mesmas máquinas.

                           denunciar as concretas fraudes eleitorais.

                           indagar sobre a parcialidades dos dois ‘tês’, um com ‘f’ outro com ‘e’, ambos

                           com ‘s’ pelo meio...

                          afirmar que existe (de novo) censura no país.

                          gritar que existe perseguição a certos grupos.

                         suspeitar do flagrante e sucessivo desrespeito à lei maior.

                         noticiar a ilegalidade certos inquéritos...

                         constatar e se assustar com a exceção que volta, com força.

 

É proibido, ‘mas eu canto’, apropriando-me de outro poeta...

Talvez, um dia,

quem sabe,

todo o resto volte a ser possível.”

Rodolfo

Foureaux, 11.10.22

Outra personagem inventada. Antes da fraude eletrônica de que fui vítima, pensei nela. O nome tem seus motivos que vão ficar ocultos por questão de discrição. Como de outras vezes, não sei o que vai ser disso. Enquanto não decido, sigo inventando...

É assim uma espécie de torpor que toma a alma. Olhar para o horizonte é quase um sofrimento. Cada respiração parece dilacerar a pouca esperança que resta de se ter confiança na humanidade. Um roubo. Uma coisa a que qualquer um está sujeito e que pode acontecer a qualquer momento. Inusitado. A experiências não é boa. A sofisticação dos meliantes anda tão aprimorada que o contato com o banco passa a fazer parte da paranoia: quem garante que os próprios meliantes não conseguiram simular todos os ademanes discursivos de um funcionário do setor de fraudes de um banco grande para ludibriar, em segundo grau, com mais profundidade, e com maldade cirúrgica, o desavisado correntista. Desânimo. Desconfiança. Paranoia. Mistura de sentimentos que faz falhar o sistema imunológico do mais saudável dos seres. Uma coisa inexplicável. Com estes pensamentos, Rodolfo Rotto chegou à cidade. Imbuído de espírito criativo – sua ideia para um novo romance o deixava inquieto e animado nas semanas que antecederam à viagem – saiu à procura do hotel que Zuleica Sueli havia indicado. Só pensava em literatura, apesar do assalto. “A vida tão longe e a literatura tão perto.” De quem é mesmo essa frase? Ele chegava com a sensação reconfortante de cumprir uma promessa feita ao amigo Otacílio. Chegar àquela cidade sem expectativas, com um livro nas mãos e o chapéu de feltro – ainda era outono, mas fiapos de vento frio já começavam a se assanhar aqui e ali – caminhar absorto é dos exercícios mais saudáveis. Destino razoavelmente bom. Rodolfo, discípulo do Reis, mesmo sem o saber, uma espécie de flâneur que denegava a metafísica – ele sempre se sentia como aquela personagem de um poema longo que falava de alguém numa tabacaria –, entrou, tal como o sujeito na tabacaria imaginária. Tinha os olhos cansados, ardendo, da noite mal dormida no trem. Os ouvidos, no entanto, captavam tudo. Cidade alegre, colorida e vibrante, olhos bem abertos, ouvidos muito atentos. Entrou na cidade como se procurasse qualquer coisa sabendo que não a encontraria ali. O prazer está na busca, pensou. Isso, para ele, é entrar num lugar, como entrar em metáforas – somente um escritor é capaz disso, o leitor passa por elas e as analisa, as observa, não entra, de fato. Rodolfo chegou sem expectativas explicáveis.  Sem expectativas. No alto de uma colina, já na entrada da cidade, o Castelo, com a velha torre de menagem: os séculos cresceram ali, ganharam importância. Pode ser que os que ali habitaram, sobretudo os velhos, sabiam admirar a sua beleza. O castelo transformou-se na residência dos antepassados de Otacílio. Rodolfo descobriu isso durante uma pesquisa para localizar informações sobre um seu antepassado. Por ali pensadores conhecidos. A matriz faz lembrar, numa escala mais modesta, mas não menos nobre, a de Florença. Mais adiante, uma construção monumental, um palácio que se parece muito com a casa dos bicos, em Lisboa. Rodolfo, admirado, para, senta-se à sombra de uma árvore e abre um livro É a história de um poeta que se exila num país distante e retorna; torna-se mecenas e promove talentos literários do local. A história dele se parece com a de Rodolfo, mas isso não interessa a ele mesmo. Uma fase passada. Na atualidade, está mais preocupado em publicar seu novo romance e encontrar-se com pessoas que conviveram com Otacílio, matéria importante para sua ficção. Rodolfo sorri. Toca um ramo mais baixo da árvore e suspira. Sonha com a premiação de prestimoso certame literário. Rodolfo continua o seu caminho, como aliás todo mundo deve fazer depois de tentar tocar em ramo de árvore que se encontra muito longe de casa. Rodolfo visita o museu local, vislumbra pinturas de Tintoretto e Cosime Tura. A visita àquela cidade parecia prometer alegrias infindáveis a Rodolfo Rotto, o escritor. Quanto mais andava pelas ruas centrais da cidade, mais decidido estava no passo sem expectativas. Na tratoria que encontra seius ruelas abaixo da praça em que estava, Rodolfo se depara com um prato de flores de abóbora fritas e recheadas com muçarela. Uma garrafa de Carmenère na temperatura ideal. Rodolfo pensa na vida. Na verdadeira, grande e forte acepção da palavra. A vida que estava levando desde que conheceu Otacílio, ainda que à distância. Ainda na tratoria, a vida surgiu quando parecia andar tão longe. Um casal sentado na mesa ao lado parecia desconhecer a existência da humanidade. A tratoria é rústica e elegante, pintada de branco, com muitos vasos e um teto de madeira. Janelas altas e largas por onde entra a luz da vida e da literatura e tudo o que um leitor quiser. Bebericando o vinho, o jovem, elegantemente vestido, levanta-se para logo de seguida se ajoelhar perante a sua amada. Retira do bolso uma pequena caixa de veludo negro, abre-a e nela palpita um anel dourado e brilhante, cor do fogo. Ele chama-a pelo nome. Ela traz um vestido vermelho. Pede a moça em casamento. Rodolfo se enternece e, cínico, ensaia um sorriso disfarçado. Então, com o copo na mão, mas de boca ridiculamente semi-aberta, assistia a este episódio e lembrava-se de como a vida está tão perto da literatura que às vezes me esqueço do quão bonita pode ser a realidade. E a vida continuou. E a literatura também. Passou o resto da tarde a deambular pelas ruelas da cidade. Já não quis saber de museus, nem de História, nem de pintores e muito menos de poetas. A literatura estava a acontecer ali à frente, de braço dado com a vida, e tinha a forma de um anel brilhante. Pode ter sido efeito do vinho, ou do sol, ou do céu olímpico, que fazia lembrar “um granzoal azul de grão-de-bico”, ou do deambular, ou de outras águas como as do rio ali adiante. Pode ser que houvesse distância considerável entre vida e literatura. Quem sabe a resposta poderia vir a público e apresentá-la, se é que existe a possibilidade de dizer o que seja, de fato, o que significa. As viagens acabam sempre num regresso a outras paragens: mãos dadas, talvez. Quiçá outros lábios.

Uma carta

Foureaux, 05.10.22

Uma carta. Ainda não sei o que vou fazer com ela. Quem escreve é Otacílio Piffio, o escritor identificado por esse pseudônimo. Não sei se darei a ele um nome. Por enquanto mantenho o nome da personagem do romance que ele escreve igual ao pseudônimo que usou para escrevê-lo. Acredito que pode dar um certo ar de suspense. Não pretendo que o romance seja policial. Não quero mistério pelo mistério. Isso, a garotada das oficinas de escrita criativa é capaz de fazer. O “mercado” gosta e consome. Isso é vulgar. Está se tornando cada vez mais vulgar. Gosto de ler, mas não gosto de cultivar o gênero. Sou chato, sim e daí? Por isso não sei o que fazer com essa carta. Não sei se revelarei o nome verdadeiro do autor do romance. E tenho que pensar no que já escrevei, no corpo encontrado no quarto de hotel, na relação entre a camareira e o rapaz da limpeza. Tem o detetive. A Zuleica e agora esse destinatário da carta de Otacílio Piffio. Tanta coisa! A preguiça só faz aumentar. Por enquanto, fico com a carta como aqui está!

 

“Recebi sua carta ontem. Uma coisa e outra e, pronto, não respondi ontem mesmo. respondo hoje. Sei que você, às vezes, prefere as mensagens de texto, ou mesmo, as de áudio. Confesso que é muito mais prático. Não há dúvida. Mas e o charme de escrever pensando no destinatário. Marcar o papel lembrando de passagens comuns. Imaginar a reação de quem vai receber e ler a carta. Tenho a ilusão de que sempre vai ser uma surpresa. Conheço você muito bem. Faz quase quarenta anos que nos conhecemos e ainda tenho a mesma ilusão. Sei que você sente o mesmo, ou algo muito parecido. Por aqui tudo tranquilo. Aas chatices do concurso continuam. Recebi notícia de que o romance foi classificado para a terceira etapa. O problema é o júri final., aquele que lê apenas Sempre me entusiasmei com a vida dos santos. Quando fui beneditino cheguei a ler algumas obras a respeito. Dentre eles, há um que sempre me chamou a atenção, por conta de sua relação visceral com a ordem beneditina, que sempre me fascinou. O nome dele é Bernardo de Claraval. Em francês, seu nome fica bem mais chique: Bernard de Clairvaux. Mas não se trata de “chiquezas” aqui… Bernardo foi um abade francês canonizado em 1174 e em 1830 Pio VIII o proclamaou Doutor da Igreja. Foi o principal responsável por reformar a Ordem de Cister – daí minha fascinação com ele e com a ordem dos beneditinos. Este santo participou do Concílio de Troyes, que delineou a regra monástica que guiaria os cavaleiros templários e que rapidamente tornou-se o ideal de nobreza utilizado no mundo cristão. Foi eficiente na reconciliação da Igreja durante o chamado “cisma papal de 1130”. Foi Bernardo quem ajudou a organizar o Segundo Concílio de Latrão – em 1141, Inocêncio convocou o Concílio de Sens para tratar da denúncia de Bernardo contra Pedro Abelardo. Com bastante experiência em curar cismas na Igreja, Bernardo foi em seguida recrutado para ajudar no combate às heresias que grassavam no sul da França. No Oriente Médio, depois da derrota cristã no cerco de Edessa, o papa encarregou Bernardo de pregar a Segunda Cruzada, cujo fracasso seria depois considerado parcialmente culpa sua. Morreu aos 63 anos, depois de passar quarenta anos enclausurado. Foi o primeiro cisterciense no calendário de santos, tendo sido canonizado por Alexandre III em 18 de janeiro de 1174. Ao que parece, São Bernardo foi um homem de muitas iniciativas e poucos sucessos. Parece ter sido um homem enérgico que acabou, vamos dizer assim, metendo os pés pelas mãos, ainda que tenha se tornado santo. mas isso é outra história. Por enquanto, basta guardar estas informações. Mudando de assunto, uma ave que me fascina é a coruja. Simbolicamente, esta ave representa a reflexão, o conhecimento racional e intuitivo. Na mitologia grega, Athena, a deusa da sabedoria, tinha a coruja como símbolo. A associação desta ave a Athena, faz com que a gente veja a deusa como um ícone de profecia e sabedoria. Além disso, os gregos acreditavam que por ser um pássaro noturno, era um símbolo de busca pelo conhecimento, já que esse era o horário considerado propício para o pensamento filosófico. Mas o que é que pode haver de comum entre estas duas considerações? Respondo logo: a releitura de um romance que sempre me impressionou: São Bernardo. De novo, quando fui beneditino, um colega e ordem me perguntou o que é que eu pensava de Graciliano Ramos. Respondi que era um escritor chato, seco e sem graça. O colega riu muito. Conversamos um tanto sobre Literatura Brasileira e ele arrematou a conversa dizendo que eu lesse CaetésAngústia e Memórias do cárcere. Exatamente nesta ordem. Fi-lo. Depois de fazê-lo, voltamos a conversar e minha opinião mudou radicalmente. Hoje, pela quarta ou quinta vez, releio São Bernardo. Um romance impressionante. Primeiro porque pensei em associar a figura da personagem principal, Paulo Honório, à do santo mesmo. Leio alegoricamente esta associação, sobretudo, no que o santo tem de enérgico, cheio de inciativa e desastrado ao final das contas. Segundo, porque há no romance o pio da coruja que aparece, se não me engano, três dezes. Duas delas chegam a assustar o protagonista do romance. Isso não pode ser gratuito.

Mudando de saco pra mala, não quero a mirada da mediocridade a obscurecer os momentos de lucidez que, porventura, venham a me inundar a alma. Não mais ter que aguentar as caras tortas de quem acredita que um poema vale menos, bem menos, que tudo que alguém pode dizer sobre ele. Mesmo quem jamais “leu” o poema como seria de esperar. A dispensa do poema não é garantia de melhor abordagem teórica ou crítica ou analítica. Os detalhes de um poema contam. A discussão começa por conta da dúvida sobre o “excessivo” uso de vírgulas ou de pronomes relativos na composição de seu poema. Foi “decretado”, antes de tudo começar, que a biografia do poeta é dispensável, por foça de sua influência sobre o entendimento da “mensagem” do poema. Comecei a rir. Daí, um salto para a circunscrição do poeta e de seu poema na “série histórica” da literatura nacional à qual pertence, sem esquecer, é claro, o problema dos gêneros, subgêneros tipos textuais e quejandos que a poética – a de Dilthey ou a de Hegel, bem entendido –, exigem como conditio sine qua non. Eles não sabiam o significado da expressão, assim como desconheciam o bom uso da mesóclise. Patético.

O romance foi selecionado entre outros 3725. Destes, 2400 não passaram pela primeira triagem. Trezentos professores universitários de diversas partes do país leram 8 romances cada. Depois, o júri preliminar selecionou três. O júri final, composto por três membros por sua vez, leu apenas três romances selecionados pelo outro. Uma judiaria. Muita coisa boa deve ter passado batido. Parece um massacre. Imagina. Não sei se sinto orgulho disso. Não sei dizer. Fico imaginando a trabalheira e a quantidade de interesses e picuinhas que interferiram em todo o processo. De qualquer maneira, gostando ou não, pode-se dizer que é uma vitória.

Tédio. Isso é o que eu sinto agora. Tédio. Você não responde mais com a mesma frequência. Eu também ando atrasando as minhas cartas. Você prefere os meios mais modernos. Eu quero tudo o que eu não tenho. Quero ser lido. Quero ser valorizado. Quero ter meus livros vendidos sem ter que me preocupar se a editora está ou não depositando os direitos autorais. Tudo impossível. Esta cidade está impossível. Ainda assim eu escrevo, mesmo sem saber para quê, por quê, para quem. Escrevo e continuo sentindo o mesmo tédio. Vamos ver se você não demora tanto a responder desta vez!” 

Rascunho

Foureaux, 28.09.22

Assim, simples. Não seria uma história. Não de fato. Poderia ser, mas não sei. Não estou seguro se faria sentido se fosse mesmo uma história. O homem andaria muito, observando o sol, o vento, o céu. Sentiria o vento e a textura da terra em que pisa. Tudo com muita calma e prazer. Sim, prazer. Não seria possível imaginar esse homem sem prazer. Em todos os sentidos. Espero que isso venha a ficar claro. Pois então. O homem anda, por dias a fio, encontra lugares de que gosta. O ângulo da luminosidade. Os acidentes geográficos que pode identificar dali. Se for do alto de uma falésia, o mar seria outro ponto de interesse. Não importa. O que vale mesmo é saber que antes de mais nada ele anda, muto. E para sem cálculo, sem previsão. Para quando sente que deve parar e quando sente que o lugar em que está é suficiente para fazer o que ele tem que fazer. Sim. Ele faz porque tem que fazer. Claro que ele gosta, mas tem que fazer. O senso de obrigação é atávico e ele não sabe explicar por quê. As pessoas perguntam coisas a respeito. Perguntas soltas, às vezes desarticuladas. Ele sabe que todos querem saber o que ele também quer, e não sabe. Ainda. Acredita que com o resultado do que faz seja possível encontrar uma resposta. Ou não. Será que importa mesmo encontrar a resposta? Ele se pergunta, sempre, mas continua. Então... ele caminha. Senta-se e começa os eu trabalho. Aproveita as tonalidades que a luz do sol ou sua ausência oferece, à sua vista, à sua sensibilidade. Se alguém perguntar como é que sabe que está na hora e fazer o que gosta de fazer, ele, sem dúvida, responderá que é incapaz de dizer. Só sabe que percebe que a hora é aquela. Pronto. Ele começa a fazer. O senhor José começa a fazer. Não sabe ainda como vai continuar o que começou, mas vai fazer. Sentado, olhando para o nada, lembra-se do sonho. As mesmas putas. A cidade escura, úmida, em ruínas. As mesmas putas. O ônibus cheio de gente que passa rente à parede das casas. As mesmas putas. As ruas largar que dão em avenidas largas que são conhecidas, mas levam para a rua das putas, as mesmas putas. O ar fétido, umidade excessiva, fumaça, casas em ruínas, sujeira. As mesmas putas. O senhor José não sabia como se livrar das putas. Um incômodo com o qual, dizia sempre, estava cansado de lidar. Não sabia mais o que fazer. Aproveitar os flashes que tinha dos sonhos que sempre se repetiam. Pode ser uma ideia interessante. Não via maneira de se livrar das putas. Foi quando teve a ideia de começar o que começou a fazer. Não falou nada com Zuleica Sueli, mas tinha certeza de que, a certa altura, teria que contar pra ela. Muito curiosa. Boa pessoa, mas muito curiosa. Gostava de se pintar e o Senhor José não se incomodava. Tinha pena, na verdade. Sabia que Zuleica não era mais tão jovem e pensava que o exagero da pintura na cara só fazia tornar mais patética a situação de sua amiga. O senhor José era uma boa pessoa, um bom amigo e, de fato, não poderia ter a mais pálida ideia do que viria a acontecer depois que contasse para Zuleica o que iria fazer. Mas estava decidido. Pronto. Era hora de dormir!

Graciliano Ramos

Foureaux, 01.09.22

Faz tempo, em três palavras destruí quase uma década de literatura. Isso me disse um amigo, à altura. A “destruição” se referia a Graciliano Ramos e sue romance Vidas secas. Naquele momento, não tinha a menor ideia da bobagem que acabava de dizer. O amigo que me disse o que disse, indicou-me três outros livros do autor: Caetés, Angústia e Memórias do cárcere; a serem lidos nesta mesmíssima ordem, se não me falha a memória. Foi o que fiz. E não me arrependi nem um pouco. Agora, aposentado, retomo a leitura de livros que já li e reli, sobre os quais dei aulas e escrevi artigos. Um prazer inolvidável. Assim foi que retomei Infância, que acabei de reler. Que passeio. Numa direção contrária à de Memórias póstumas de Brás Cubas, o livro de Graciliano Ramos faz uma espécie de inventário da infância do autor. Assim dizem e consideram os comentaristas e críticos da obra. Fico como a Maria vai com as outras. A leitura agora é de puro deleite, sem as obrigações de me prender a protocolos e objetivos “concreto” a serem ministrados e depois avaliados pelo corpo discente que tanto, de mim, já ouviu. Uma amiga, comentando sobre leituras e leituras, dize que se trata de um livro cruel. Pode ser. Ainda não tinha pensado este exto de Graciliano sob esta perspectiva. A julgar pelo requinte dos detalhes da voz narrativa e pela agudeza de visão de mundo, sob a lente de uma criança que chega à adolescência (o último capítulo, se não me equivoco, sugere esta passagem, de maneira magistral, obviamente!), a assertiva faz sentido e, até prova em contrário, procede, se sustenta. Fato é que as pessoas e situações encetadas pelo relato. Curioso é perceber que este, dos livros que reli de Graciliano até agora, é o único em que a “urgência” de escrever não aparece. Por outro lado, aparece a leitura de nomes consagrados da Literatura universal, numa espécie de apanágio para o processo de amadurecimento da voz narrativa que se toma como aprendiz constante. Neste sentido, a descoberta de desejos outros, que não o de aprender, abrilhantam o já referido último capítulo de maneira contundente. A linguagem beira a ironia e o escárnio – coisa em nada rara na obra de Graciliano Ramos – fazendo com que a crueldade apontada por minha amiga ganhe consistência relevância, até. A edição que reli é a da Martins Editora. esta edição constitui-se de volumes encadernados em capa dura, com estudos introdutórios assinados por notáveis da crítica literária nacional. Gente que desapareceu do “mercado”, graças à tecnologização dos processos de leitura e, por outro lado, da ideologização das “metodologias” e das “pedagogias” que, em sua “didática” perversas, acabaram por tornar a atividades destes que assinam tais estudos uma coisa “ultrapassada”, atada, para usar o jargão dessa parcela da população. Uma pena. Perdem aqueles que não sabem reconhecer o devido valor das coisas e o lugar que elas ocupam numa linha evolutiva da própria existência humana. OS capítulos de Infância me fazem lembrar de Vidas secas. Neste, cada “retrato” vai se juntando a outro, por uma espécie de fio condutor invisível, tênue, quase etéreo. As personagens vão se sucedendo em situações que acabam por construir um “enredo” que não se quer absoluto e determinante no fluxo de considerações do narrador e de suas personagens. Aqui, em Infância, estas personagens se perdem nas memórias de uma criança que vai avançando no tempo e na experiência de viver. Esta perda, em ada e por nada é pejorativa. Ao contrário, ela faz com que a voz narrativa se percebe um ser em construções e sabe reconhecer valores e lições em sua devida dimensão. Neste sentido, o capítulo em que tece seus comentários (anotados de memória, quero crer) sobre sua experiência com a justiça – eu diria que com a autoridade também – num episódio envolvendo seu pai é de um lirismo (cruel, nas palavras da amiga) cortante. Para usar termo corrente nas rodinhas da moda de hoje: cirúrgico. Ai que preguiça. O vigor de sua indiferença sobre a experiência com o religioso – o episódio que narra a descoberta da vocação religiosa e suas consequências chega a ser hilário – é de uma ironia quase incômoda, não fosse a pena do autor a torná-la legível. Outras passagens da infância num aterra ingrata soam no mesmo diapasão. As descrições – de pessoas, situações, coisas, acontecimentos, espaços e ideias – não foge ao figurino do autor. Um misto de descrença e sarcasmo com a constatação, implícita da inutilidade de tentar fazer o outro compreender o que para quem escreve parecer tão claro. O dilema que, a meu ver, ronda a escrita de Graciliano Ramos não deixa demarcar sua presença aqui. Pode ser que o texto recebe o epíteto de bildungsroman: romance de formação, expressão que identifica o tipo de romance em que o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, intelectual, social ou político de uma personagem é relatado (às vezes ficcionalizadamente) de forma pormenorizada. Geralmente, o “enredo” (as aspas se devem à fluidez do conceito no que diz respeito a Infância) se estende desde a infância da personagem até sua vida adulta. No caso específico deste romance de Graciliano Ramos, vai apenas até o início da adolescência, salvo engano de minha parte. De um jeito ou de outro, é livro de leitura imprescindível para quem diz gostar de Literatura. Fica o convite.