Março 20, 2023
Foureaux
Como descrever o que há por detrás das palavras e suas entonações durante um diálogo? Há que notar que neste caso particular, o diálogo se trava entre um príncipe e um primeiro-ministro, do mesmo país. Há uma dúvida no ar. O príncipe quer saber do primeiro-ministro o que ele pensa sobre o resultado da recente pesquisa sobre a monarquia. O primeiro-ministro diz que se trata de uma mera pesquisa, apenas. O príncipe rebate, argumentando que é perigoso não levar a pesquisa a sério. O primeiro-ministro encerra a discussão dizendo que igualmente perigoso é deixar-se guiar pela mesma pesquisa. A situação está, aqui, resumida, para efeito de análise e comentário. Na aparente simples troca de palavras que, por sua vez, dá expressão a uma aparente simples troca de impressões acerca de um evento banal, a pesquisa de opinião, existe um universo inusitado, imensurável e abissalmente complexo de possibilidades. Os movimentos labiais, as movimentações de sobrancelhas e os gestos manuais são contributos mais que decorativos na cena. Muito mais. Não se trata apenas de dramatizar uma situação concreta. No fundo, o que acontece é a transposição para a realidade de algo que a percepção humana não dá conta num primeiro momento. basta ver, a título de comparação, o que acontece quando, no início do filme, Gloria Swanson se dirige a William Holden, na sequência de abertura de Sunset Boulevard. Ela observa o rapaz distraído e pergunta quem é ele. Se identificam e se apresentam. Ele comenta que ela parecia ser “maior”, em tom irônico, pois ele reconhece a grande estrela do cinema mudo. Ela replica dizendo que ela é grande, as fotografias é que ficaram menores. O chiste, muito sutil e sofisticado, exala toda a malícia da observação, o que toca o nervo central da figura da atriz, por que não, decadente. Esta sequência, ainda no início do filme, dá o tom de todo o relato imagético. Com esses dois exemplos, o que está no fundo de minhas elucubrações aqui é o fato de que algo muito importante tem sido desperdiçado se já não está totalmente perdido, na sociedade “progressista” da/na atualidade: o valor da palavra. E ambos os exemplos, o senso comum depauperado dos dias que correm evidencia a sequência de imagens e se esquece de prestar atenção nas palavras. Houve um tempo em que o que era dito por alguém tinha um valor quase material, concreto, ontológico mesmo. Não era necessário comprovar nada com documentos, assinaturas, sinetes em lacrem, coisas do tipo... A palavra bastava. A opinião de alguém servia de guia para o que quer que fosse. Como acontece em Sociedade dos poetas mortos e o método utilizados pelo novo professor de Literatura que provoca revolução profunda na didática do ensino da escola “careta” em que passa a lecionar. Tanto é assim que ele transforma a vida de três ou quatro estudantes no filme. As palavras do professor foram suficientes para orientar os estudantes nos caminhos e descaminhos de suas descobertas adolescentes, confrontando-os com uma realidade avessa a este mesmo caminhar. Nos três exemplos aqui elencados, a palavra é soberana, sobrepõe-se à sequência imagética e define um campo subliminar de atenção/ percepção que, hoje em dia, costuma ser desprezado. Numa sociedade que endeusa a imagem e a aparência com o intuito de criar uma ilusão fantasiosa e invejável, a palavra tem sido subjugada e relegada a um plano inferior, aquele das injúrias, dos lugares comuns, do analfabetismo funcional que assola o mundo. Basta acompanhar por pouquíssimos minutos uma série de postagens, nas famigeradas redes sociais, para constatar este fato. Sobretudo nas postagens que se dizem oriundas de “influenciadores”. Nestes casos, é corriqueiro o uso de consoantes coladas, sem vogais para substituir as palavras; o uso de verbos no infinitivo, sem o erre que caracteriza este caso; a quase absoluta inexistência de concordância nominal, em nome de uma outra “linguagem” tida e havida como mais “inclusiva”. Ledo engano. O desprezo pela palavra está matando valores mais que basilares por inanição sufocante. Uma lástima. Não sei se me fiz entender, mas sei que disse o que me deu vontade. Punto i basta!