Numa sequência de um episódio em uma das temporadas da série britânica Outlander, a personagem de Caitriona Balfe faz uma experiência com miolo de pão, na tentativa de descobrir um remédio que seja antibiótico. Ela viaja no tempo, tem conhecimento avançado em relação aos demais que vivem com ela no passado e está preocupada com algumas mortes que poderiam ter sido evitadas com antibióticos. No tempo para o qual ela foi transmutada, é impossível fabricar penicilina e similares, obviamente. Ela busca, então, na sabedoria popular – de fato por um acidente doméstico –, uma solução para o seu problema. No tal episódio, ela vai até a cozinha de sua casa e percebe que o pão está mofado. Há todo um diálogo que não vou reproduzir aqui, por pura preguiça de procurar o episódio a que me refiro. Em síntese, por causa do mofo no pão, ela resolve fazer uma cultura de fungos para produzir o medicamente de que precisa. Bolor, mofo, miasma, hircismo, sito, abolorecimento. Tantas palavras... A primeira é a que me interessa. Bolor. Este é o título do romance que quero comentar, para chegar a outro, A cidade das flores. Ambos foram escritos por Augusto Abelaira e, ainda uma vez, com estes comentários, presto homenagem a um amigo caro, o Artur.
A cidade das flores é de 1959, primeiro romance de Augusto Abelaira. Bolor é de 1968. Começo por ele. Ambos, em alguma medida, expressam a verve experimentalista do autor. Com isso não que o dizer que ele pertença a uma “geração” de escritores que tenha se notabilizado, na série histórica portuguesa, como experimentalista. Longe disso. O que desejo reafirmar é que a escrita de Abelaira, nestes dois romances é reveladora de uma criatividade que se se desenvolve na experimentação de registro ficcional não usual em seu tempo. Talvez, por alguma influência estrangeira – o espaço deste meu texto é estreito e não pretendo defender uma tese, apenas registrar minhas impressões – o texto de Abelaira, nestes dois livros destaque-se por esta peculiaridade. No primeiro de sua extensa obra, as três personagens – Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo – estão envoltos numa trama afetiva que os faz preconizar uma espécie de triângulo amoroso. A ideia não é minha. Li já não me lembro onde, mas é fato. O diálogo que se desenvolve, numa complexa rede de reviravoltas, intersecções, torneios discursivos e revezes, é denso e marcado pelas impressões trocadas, sobretudo, acerca da relação que entre si mantêm as três personagens. Há quem dê muita importância ao fato de Humberto escrever com cor de tinta azul; Maria dos Remédios Varela Rodrigues, com tinta preta e Aleixo, com tinta roxa. É bom lembrar que num romance, como este de Abelaira, a presença de uma voz narrativa fragmentada não é mero acaso. Há, por certo, uma espécie de objetivo escritural a ser alcançado a partir do uso de tal estratégia. desta forma, a diferenciação de cor da tinta com que escrevem as personagens, em igual media, não é mero detalhe, decoração ou falta de assunto. No entanto, também isso não é meu ponto de fuga aqui. De fato, o que mais desejo registrar é a deliciosa trama que se urde ao longo das anotações de um diário fictício (e ficcional) escrito pelas três personagens do romance. Isso me fez pensar na associação do título do livro com seu similar, na biologia. Por mais que uma casa seja limpa e nova, está sujeita à ação do mofo, que pode aparecer naquele cantinho do ambiente que é mais úmido e escuro, e que pouco se dá atenção. Assim se pode ler a relação estabelecida entre as três personagens do romance. A proliferação do mofo, dizem a sabedoria popular e a ciência, pode causar doenças. No romance, esta particularidade da matéria biológica pode ter seu correlato na troca de impressões que o diário partilhado pelas personagens do rmance de Balaira revela. É como se algo estivesse a envolver Aleixo, Humberto e Maria dos Remédios. Algo que é deles conhecido, mas não nitidamente percebido pelo leitor. Ou, por outrolado, alguma coisa eu o leitor identifica e vai percebendo, ainda que por rastros, índices, ilações, e não se revela aberta, completa e definitivamente. A associação com a ideia do unheimliche freudiano não passa batida por aqui.
Aolado deste romance, aqui, A cidade das flores pode, em certa medida, ser lido como uma espécie de contraponto. Não no sentido dissociativo, mas no de estímulo a um diálogo intertextual que, se não foi proposital, passou muito perto disso. Tal possibilidade conta com o respaldo do tempo que se atravessa entre a publicação de Bolor e de A cidade das flores. Neste, as personagens também se envolvem numa trama de impressões, ilações, comentários e, até desabafos. No entanto, a ausência de um cenário definido, no primeiro, a funcionar como “espaço narrativo” faz do segundo uma espécie de rota a ser seguida em território italiano. Como foi a primeira vez que li este romance, chamou-me a atenção este dado. O romance se passa na Itália. Ou estarei equivocado? O risco existe. Depois de tantas leituras e dando azo ao sedutor ócio criativo, em bem posso ter fantasiado tal circunstâncias. Valho-me do direito a fantasiar. A trama de A cidade das flores se passa na Itália. Isso poderia levar um leitor menos avisado a concluir que o romance foge do caráter nacionalizante que, mesmo nas entrelinhas, por debaixo do pano, está a solicitar sua dose de obediência. Por isso, faço minhas as palavras da Almerinda que, em seu blog (https://almerindaagridoce.blogs.sapo.pt/a-cidade-das-flores-augusto-abelaira-50249) comenta o mesmo romance: “Em 1961, no posfácio à segunda edição de A Cidade das Flores, Augusto Abelaira faz uma reflexão e uma série de perguntas que considerei muito relevantes. Começa assim: “A nova edição de um livro significa que esse livro não morreu”. E mais à frente: “Um livro que se reedita é um livro que se esgotou. Portanto: Quem o esgotou? Quem o leu? E por quê?” (…) “Porque leio eu um romance?” (…) “Independentemente de me ajudar a passar o tempo, a leitura dum romance multiplica em várias direcções a minha pobre vida quotidiana, permitindo-me sonhar.” (…) “Essas histórias… ajudam-me a sair de mim próprio e a descobrir o mundo.” (…) “Os romances preocupam-se com homens vulgares, mais próximos de mim, homens que vivem no meu modesto universo.” (…) “Acontece, porém, que, muitas vezes, buscamos num romance as nossas próprias vidas, as vidas confusas dos nossos irmãos, as nossas preocupações.” (…) “… creio que “A Cidade das Flores” documenta qualquer coisa, a reacção de certos homens a uma praga social – o fascismo; a reacção de certos homens a uma situação social adversa.” (…) “ Homens que não crêem no futuro, ou, melhor: homens que, acreditando no futuro, não têm coragem de viver no presente esse futuro.” (…) “… tenho esperança de que, dentro de cinquenta anos, A cidade das flores já não seja lida. Significará isso que os problemas deste romance já passaram à história e que os homens deram mais um passo no caminho da justiça social.” (…) “Desejaria que A cidade das flores fosse entendida como um livro de quem acredita no progresso, na justiça, na paz, na possibilidade real de os homens serem todos iguais.” (…) “E no entanto, nós, cidadãos deste ano da graça de 1961, sabemos que a História, apesar de tudo, não deu razão ao pessimismo de Fazio. Sabemos que o Hitler não dominou por mil anos. Sabemos que nenhum Hitler dominará por mil anos. A cidade das flores decorre na Itália de Mussolini. Os intervenientes são jovens que vivem em Florença, mais ou menos envolvidos na resistência ao fascismo em ascensão. Augusto Abelaira da geração de escritores da oposição a Salazar a escrever no período negro da censura, transpõe neste romance para o meio cultural, social e literário português dos anos 50 uma realidade paralela, usando personagens doutro país e doutro regime ditatorial com preocupações semelhantes e com ânsias de liberdade. Logo no início do romance, Fazio observa um casal de ingleses que tiram fotografias junto à estátua de David. Enquanto se sente escravo, prisioneiro, ele inveja aqueles turistas que para ele representam a liberdade. Fazio, Soldati, Domenico, Rosabianca, Renatta, Vianello e no outro extremo Briganti adepto das ideias de Mussolini. Nas suas conversas, nos seus encontros, os grandes temas que os preocupam. O que é resistir? O que é colaborar? Até onde se consegue resistir? O que é ser incorruptível? O que é ser honesto? Pode-se ser feliz, quando há alguém que está a sofrer, que está a ser torturado, que está preso? As ideias justas triunfarão? Quanto tempo dura o amor? O que é ser livre? É possível ser-se livre? (...) Senti este romance como intemporal, moderno e actual. No entanto, ao contrário do desejo de Abelaira, de que 50 anos depois daquela 2ª edição do romance ele já não fosse lido, a verdade é que os problemas de que fala o romance não “passaram à história”. A história e o percurso da humanidade estão longe de alcançar a justiça social e os perigos que marcaram o século XX continuam activos e sempre à espera que a democracia baixe as suas bandeiras. Resistir é um imperativo.”Esse trecho diz muito do que eu gostaria de ter dito. O romance de Abelaira, ao “deslocar” o espaço narrativo de Portugal para a Itália não faz mais que dar oportunidade à sua própria ficção de desempenhar seu papel precípuo: ficcionalizar a realidade. Os comentários do Artur, ao recomendar a leitura deste romance, ecoam agora que termino este texto. Uma vez mais, obrigado, amigo!