No dia 7 de julho passado, por volta das 16 horas, fiz minha comunicação, encerrando a etapa acadêmica do XIV Encontro Nacional de Ex Libristas, promovido pela Academia Portuguesa de Ex Libris. Tentei fazer uma blague envolvendo a sardinha – um dos ícones culturais de Portugal – associando-a ao bispo devorado pelos caetés, presumivelmente, no século dezesseis aqui no Brasil. Como consequência, faço uma ilação entre o evento de canibalismo e a antropofagia de Oswald de Andrade. Tudo num clima de blague, como é de meu feitio. Devo confessar que fui ludibriado pelo google que me apresentou como de Garcia de Resende uma foto que, de fato, era de Shakespeare. No entanto, nada disso atrapalhou o clima da comunicação que, ainda uma vez, me deu muito prazer. Segue o texto dela;
Boa tarde.
Quem me conhece sabe de minha tendência a fazer blague de coisa séria. Aqui não vai ser diferente. Começo saudando a cidade que nos recebe e que tive o prazer de conhecer em 2015, quando de meu pós-doutoramento. Uma visita inolvidável. O nome da cidade é, como vocês bem sabem, proveniente do celta antigo ebora/ebura, caso genitivo plural do vocábulo eburos relacionando-se com a palavra irlandesa “ibhar”, nome de uma espécie de árvore (o teixo), pelo que o seu nome significa “dos teixos”. Segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), o teixo é uma árvore totêmica que servia para envenenar setas. Assim é que, de volta, faço alusão à importância da cidade como local que viu nascer Garcia de Resende, em 1470, e Dom Pero Fernandes Sardinha, em 1496. Do primeiro vale lembrar a numerosa produção poética, notadamente o Cancioneiro. Dele, cito rapidamente duas estrofes de suas trovas, notadamente as que tratam de outro mito português, Inês de Castro:
Lembre-vos o grand’amor
que me vosso filho tem,
e que sentirá gram dor
morrer-lhe tal servidor,
por lhe querer grande bem.
Que s’algum erro fizera,
fora bem que padecera
e qu’este filhos ficaram
órfãos tristes e buscaram
quem deles paixão houvera;
Mas, pois eu nunca errei
e sempre mereci mais,
deveis, poderoso rei,
nam quebrantar vossa lei,
que, se moiro, quebrantais.
Usai mais de piadade
que de rigor nem vontade,
havei dó, senhor, de mim
nam me deis tam triste fim,
pois que nunca fiz maldade.
Sobre Dom Pero Fernandes Sardinha, como se sabe, foi o primeiro bispo do Brasil, tendo chegado a Salvador em 1551, vindo de Portugal. Sua trajetória ficou marcada na história do Brasil por ter sido, segundo relatos controversos, devorado por índios caetés, em um ritual de canibalismo, no litoral do nordeste brasileiro, em 1556. O canibalismo era a prática realizada por algumas tribos indígenas na então terra de Santa Cruz. Este é o epicentro de minha alocução com sabor de blague. O nome remete a uma imagem que poder-se-ia chamar de mítica. Um peixe, a sardinha. Diferentemente de seu homônimo, o bispo passou à história como um religioso beligerante, que se deu mal na missão espiritual que lhe caberia desenvolver na América Portuguesa. Dele têm sido feitas muitas análises rigorosas, especialmente voltadas para as discórdias que o separaram do segundo governador, D. Duarte da Costa, e demais pessoas que viviam na Colônia. Tudo indica que o bispo era um homem de temperamento irascível, pouco dado às amizades e vivia em constante discórdia com os religiosos. Fez muitos inimigos no Brasil. Deve ter causado indigestão nos índios caetés. Sobre Évora e o bispo encerro com o único ex-libris que minha incapacidade encontrou, o de D. Diogo de Bragança (Marquês de Marialva) e de Alexandre Corrêa de Lemos, fixado no volume intitulado História das antiguidades de Évora, de 1739, em que se relata o que aconteceu nesta cidade até ser tomada aos Mouros por Giraldo, no tempo Del-Rey Dom Affonso Henriquez e o mais que daí por diante aconteceu até o tempo presente. O peixe, alimento mais que apreciado, tem seu nome associado à História por conta de um bispo que foi comido como ela, diz a lenda... Atravessando o Atlântico, tento dar conta de estabelecer o fio condutor de minha proposta blague, trazendo à baila um poeta brasileiro, Oswald de Andrade, que, fazendo também uma blague – mais séria do que a minha, por óbvio – retoma o mito do canibalismo quando, num manifesto de nome “Antropófago”, faz proposições visando a brasilização modernista do/no Brasil, bem no início do século 20. Diz ele no início de seu manifesto: “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” E ao final, arremata:
“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado23 de Pindorama.”
Manifesto antropófago
Oswald de Andrade
Em Piratininga24
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha
O manifesto foi publicado na Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, em maio de 1928. Oswald busca uma marcação temporal para a existência brasileira que, no Manifesto, começa com o primeiro ato antropófago conhecido oficialmente; o Bispo Sardinha, isto é, Pero Fernandes, que naufragou no litoral do nordeste brasileiro e morreu como vítima sacrificial dos índios caetés. Oswald equivocou-se nas datas, acrescentando 2 anos ao tempo decorrido entre a morte do Bispo Sardinha e o ano de publicação do Manifesto Antropófago. Entretanto, o poeta parece desconhecer as cartas de Américo Vespúcio, em uma das quais o aventureiro florentino afirma ter assistido um ritual antropofágico em 1501, na Praia dos Marcos, no Rio Grande do Norte, em que a vítima era um europeu. Está concluída a blague. Começando a viagem ainda no século 15, chegamos ao 21, sem muitos ex-libris sobre o tema, pelo que peço desculpas. Ainda assim, a ideia da antropofagia, cara ao poeta brasileiro, respaldada pela História do bispo e animada por uma espécie de fetiche gastronômico lusitano, parece-me, consolida-se com sentido. Fica, assim, a intenção satisfeita de um diletante que insiste em ler os papelinhos como textos autônomos, possuidores de sentido histórico, estético, iconográfico e discursivo.
Muito obrigado!