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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

23.04.25

Coincidências (?)

Foureaux

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Dizem por aí que, numa alcateia, os primeiros dois ou três lobos, são os mais velhos. Vão À frente pela sabedoria e “conhecimento” acumulado com os anos. São Guias certos, seguros e equilibrados. Em seguida, uns cinco lobos mais novos e fortes. Seguem, aqueles mais novos que vêm acompanhados por cinco outros, do grupo dos mais fortes. Por fim, vem o que se logrou denominar o “machio alfa”, o líder. Sim, ele vem no fim, para não deixar nenhum dos lobos para três e saber que todos seguem, seguros e determinados, à sua frente. Esta é a lógica da alcateia e parece ser a mesma lógica que domina o desempenho do camarlengo no filme Conclave, um filme britânico-estadounidense de suspense e mistério de 2024, dirigido por Edward Berger e escrito por Peter Straughan, baseado no romance de 2016, de Robert Harris. O filme é estrelado por Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castellitto e Isabella Rossellini. Bem, “suspense e mistério” é por conta de quem escreveu as últimas linhas (copiei da “rede”). No entanto, é preciso que se diga, que, em certa medida a lógica da alcateia, no que diz respeito ao papel do líder, pode ser percebida no desempenho do camerlengo, como já disse. Porém, o desenvolvimento da narrativa fílmica acaba por abandonar a abordagem nesta perspectiva para anunciar uma outra que vai culminar numa revelação estupefaciente. Tive a mesma reação que no filme de Almodóvar, A pele que habito. Neste caso, a certa altura, uma pequena e rápida cena, constituída, se não me falha a memória, por um “sim”, faz perceber o que realmente se passa e que ficou encoberto por nuvens e nuances de pensamento que faziam perder o sentido do discurso imagético. No caso de Conclave, tive a mesma reação. Bem no finalzinho do filme. Quem viu, vai saber do que estou falando. Quam não viu, vai ter que ver para descobrir... De um ou de outro modo, resta a certeza da “oportunidade” do filme – quando vi, evidentemente, porque não posso super que o diretor tenha o dom da profecia... – ao vê-lo um dia depois do passamento de Francisco, papa polêmico, que dividiu opiniões e que não foi objeto de consenso, em nenhum momento de eu pontificado. Não sei, ao certo, que atitude tomar diante desta personalidade. Costumo dizer que, mesmo depois de sua morte, sinto-me dividido em relação a ela. Eu não me esqueço, jamais, de que minha opinião pouco importa, ou, como se diz no “popular”: quem sou eu na fila do pão... De tudo, fica a impressão, respaldada em dúvida abissal, de que o conclave, como processo, é mesmo uma guerra, como diz uma personagem do filme homônimo, impecavelmente vivida por Stanley Tucci. Eu ousaria dizer que uma guerra de egos, fogueira das vaidades, para blaguear título de livro e filme de outros tempos. Fica, então, a dica: vejam o filme. Está no Amazon Prime Vídeo. Ad sumus...

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22.03.25

Cinema

Foureaux
 
Um homem importante é assassinado. Cinco rapazes são o repontáveis. Com firmeza, três deles são capturados e presos. Junto deles, uma senhora, a dona da pensão onde o grupo se encontrava a convite de seu próprio filho, que desaparece, até ser encontrado pelo advogado de defesa da mãe. Aos poucos vai-se tomando ciência de que se trata de um plano pensado e organizado e executado sem a inteira consciência da dona da pensão e de sua filha. Ela sabia do que se tratava, mas não participa do plot. Tempo passa e um inquérito militar e instaurado com a finalidade precípua de incriminar os quatro presos, inclusive a dona pensão, que não participou efetivamente de nada. Advogados tentam um júri, mas os militares negam. O “julgamento” transcorre como soe acontecer nesse caso: tendenciosamente. Não vou dizer como termina essa “historinha”, só digo que fiquei horrorizado, enojado, envergonhado, triste e mais descrente, sobretudo com a “natureza humana”. À veze, penso que não somos dignos de ser o que/como somos... Estou a falar de um filme, quase obviamente: The conpirator, 2010, sob a direção de Robert Redford. Em Português, encontrei duas versões: Conspiração americana e Os conspiradores. A escolha é livre...Um filme forte, impactante e sério. Faz pensar obre caráter, intenção, ideologia e interesse. O assassinato de Abraham Lincoln é o núcleo do plot da película. Vale muito a pena. Intensificou o que venho pensando sobre a atualidade em que “vivemos”. A personagem, a trama, o interesse e, sobretudo, a falta de qualquer senso de realidade, de vergonha e de moral, em boa parte dos casos. Uma tristeza profunda se junta à já famigerada síndrome de Macunaíma que me assola. Já, a esta altura, que me constitui. Que o fim de semana de quem me lê seja tranquilo, divertido e... o que mais for de interesse de cada um. Evoé!
31.01.25

Palavras e imagens

Foureaux

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Reli Dom Quixote. E ri muito. O livro é mesmo engraçado. À parte o fato da tradução do aquilino Ribeiro ter expressões um tanto esdrúxulas, gostei. Foi uma leitura mais deleitosa. Já o havia lido outras duas vezes, em traduções diferentes. Não fosse o cartapácio que é, me atreveria a traduzi-lo, tentando empregar linguagem mais leve, menos literal e, tanto quanto possível, longe de purismos e idiossincrasias peculiares. Tarefa quase impossível, mas fico com a releitura, por enquanto. Paralelamente, li um livro de que já havia ouvido falar e, até já tinha lido alguma coisa acerca dele mesmo: Terra dos homens (Gallimard, 1939), do Antoine Saint-Exupéry. Na edição que li (Clube de Literatura Clássica), quem faz a apresentação (Rodrigo Bravo) diz o seguinte: “Terra dos homens é um daqueles livros cujo gênero é de difícil definição. Não se trata de um romance propriamente dito com personagens bem delineados e história provida de começo, meio e fim. Também não se trata puramente de um ensaio filosófico aos moldes de Sêneca, Kant ou Heidegger. Situa-se no limiar entre ambos, de modo que a crítica literária cunhou o termo relato lírico para tentar dar conta de sua complexidade. A obra traz uma reflexão sobre as experiências do autor como pioneiro da aviação nos anos 20 e 20 (...).” Vou ficar só com esse pedaço de citação. Minha chatice não aguenta seguir em frente. Ora, quer dizer que para ser um romance tout court é necessário ter “personagens bem delineados e história provida de começo, meio e fim”? Em primeiro lugar, para quê reduzir a leitura de um texto à busca de “definição” de seu gênero. O prazer da leitura (vide Rubem Alves) se perde completamente no cipoal que esta busca cria... Por outro lado, quem garante que a presença dos elementos citados pelo apresentador é suficientes para a “definição” de um “gênero”? Para além disso, o cacoete “acadêmico” diz “presente” neste minúsculo trecho quando se depara com o verbo “provido”, adequadamente flexionado pelo jargão rançoso e sebento de uma crítica que visa o mercado e a instituição, em lugar de se dedicar a seduzir o(s) leitor(es). Como eu disse, minha chatice não aguentou ir adiante com a citação.  E mais, adoro aspas: elas dizem muito mais do que muitas palavras... adiante. Umdos trechos interessantes do livro – para além de todo o conjunto de observações, circunlóquios, solilóquios e pensamentos que deslizam elas páginas como aragem em tarde de verão – pode ser (até) utilizado para sustentar o argumento de que o texto é contemporâneo, mas deixo isso para os que lerem o livro do escritor francês. cada um sabe de si. O trecho a que me refiro é o seguinte:

 

“Podemos classificar os homens em homens de direita e homens de esquerda, em corcundas e não corcundas, em fascistas e democratas, e essas distinções são inatacáveis. Mas a verdade, como você sabe, é aquilo que simplifica o mundo, e não o que cria o caos. A verdade é a linguagem que alcança o universal. Newton não “descobriu” uma lei por muito tempo dissimulada, como se fosse a solução de um enigma; Newton efetuou uma operação criadora. Fundou uma linguagem humana que pôde exprimir tanto a queda da maçã no chão quanto a ascensão do sol. A verdade não é o que se demonstra, é o que simplifica.

Para que serve discutir ideologias? Se todas podem ser demonstradas, todas também se opõem, e discussões como essas levam a desesperar da salvação do homem. Ao passo que o homem, em todos os lugares, ao nosso redor, revela as mesmas necessidades.

Queremos ser libertados. Quem golpeia o chão com uma picareta quer saber o sentido desse golpe de picareta. E o golpe de picareta do condenado, que humilha o condenado, não é o golpe de picareta do minerador, que engrandece o minerador. A prisão não é onde os golpes de picareta são dados. Não é um horror material. A paixão é onde os golpes de picareta não têm sentido, não unem quem os dá com a comunidade dos homens.

E todos nós queremos fugir da prisão.”

Confesso que o trecho não é dos meus preferidos. No entanto, fiz questão de escolhê-lo para provocar quem, por acaso, me ler. Não subscrevo a falácia de que tudo que tem quer politizado, no sentido de marcação ideologicamente tendenciosa do discurso. Mas é só uma provocação.

Mudando de direção, vi um filme delicadíssimo. O que ele tem de delicado tem também de forte, contundente, avassalador por dois motivos: a presença de dois atores de impecável talento e irrecorrível valor: Glenda Jackson e Michael Caine. Ambos desempenham papéis condizentes com sua idade real. O segundo motivo é o tratamento dado ao plot do filme: o desejo de superação de traumas, muitas vezes, recalcados por vontade própria, em nome de um equilíbrio que se perde, por desnecessário: mas só se percebe isso quando o tempo passa. A história de um homem idoso que volta ao ponto de viragem de sua vida sob o pretexto de participar das comemorações dos 70 anos do “Dia D”. De fato, esta é apenas a válvula de escape para o verdadeiro drama que se desenvolve em atuações simplesmente irretocáveis – como não podia deixar de ser. Estou falando de A grande fuga (The great escaper, no original), de 2023, dirigido por Oliver Parker. Um filmaço. Como eu disse, de uma delicadeza contundente. Vi na Netflix e recomendo – ainda que eu saiba, de antemão que “recomendações” são sempre falhar, discutíveis e, quase sempre, inúteis. Mas... vá lá...!

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15.01.25

De um filme...

Foureaux

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Para além da Literatura, filmes são outro assunto que me encanta e fascina. Não sou exatamente um cinéfilo, mas gostava de ir a “cinemas”. Hoje, isso não existe mais. Há salas de projeção em centros de compra, o que é bem, mas bem diferente mesmo. Já perdi a vontade e, atualmente, vivendo no litoral, numa cidade em que ainda sequer se sonha em ter um centro de compras, que dirá um cinema... é impossível. No entanto, graças à tecnologia avançada e sempre em desenvolvimento, é possível ver filmes na televisão, no computador e até no celular para quem tem pachorra suficiente para tanto... O texto de hoje é a literal reprodução de outro de autoria alheia: Rafael Lima ((8) Facebook) – o link, apesar de estranho funciona, pelo menos, funcionou na minha tentativa! O rapaz é ex-aluno de um ex-aluno meu, o Gerson Roani, hoje professor titular de Literatura Portuguesa em Viçosa. amigo dileto. Rafael comenta o filme que está em todas as bocas de matildes: Ainda estou aqui. Não vi o filme. Não vou ver o filme. No entanto, creio ainda ter o direito de corporificar ideias que me vêm quando embarco na maré de comentários – entre eles, alguns estapafúrdios, como soe acontecer – que pululam por aí. Gosto da atriz principal, apenas como comediante. Vi, com ela e a mãe, uma peça em Santa Maria-RS, nos idos de 90 do século passado, uma peça dirigida por um tal de Geral Thomas – com quem a dona foi casada –, então enfant terrible da “cena dramatúrgica” de bruzundanga – The flash and crash days. É preciso dizer mais? Depois, vi um filme dirigido por Walter Salles – Terra estrangeira. A atriz, competente, como comediante, não me atraiu nem um pouco então. Hoje, à continuação, segue não me chamando a atenção. O texto do Rafael é brilhante. Direto, contundente, sincero. Agradou-me imenso. Republico-o com a autorização do autor sem mexer em, sequer, uma linha. Leiam-no:

“Se há um traço característico que resume a ideologia como pretenso recurso de conhecimento universal é o de que, fechada em si mesma, ela tem de, necessariamente, ignorar as contradições da realidade, reduzindo à rés do chão, num discurso fechado e linear, toda a complexidade das relações entre os entes.

Dessa forma, como esforço de abstração cujo fundamento teórico está deslocado da experiência real e imediata, ela vale tão somente como simulacro de interpretação da realidade, que engana e confunde.

A distância abissal entre a euforia da caviar gauche e a indiferença do grande público em relação à premiação de Fernanda Torres em “Ainda estou aqui” (2024) é só mais um episódio da tragicomédia que é a bolha de auto lisonja da esquerda nacional.

O hiato entre a fixação monolítica da esquerda com a ditadura e o que pensa o povo é o que distingue quem enxerga o mundo como ideia, e quem acredita no que veem os próprios olhos.

O esforço já quase secular da militância de superdimensionar os excessos do regime militar não condiz em quase nada com a percepção popular dos acima de 50 anos.

Abaixo disso, cabe dizer, a opinião interessa pouco. É assunto que exige menos “estudo” e mais, digamos, “entrevista”.

Os exageros e brutalidades foram todos registrados em tempo real. Não temos um “arquivo de Moscou” para chamar de nosso. Também não teremos os “julgamentos-espetáculo”.

Está tudo aí. Correu tudo à luz do dia. E o que escoou para os “porões” em 20 anos é menos do que o que acontece numa única favela do RJ enquanto essas mal traçadas são lidas.

As vergonhas militares foram estampadas em papel jornal, timbrado e sulfite. Constam nas hemerotecas, bibliotecas e nos autos. Nos altíssimos.

Por isso o desencanto. O sujeito respira fundo, e diz “é, teve uns excessos, umas grossas sacanagens, mas todos os indenizados já estão ricos.

Aliás, a República nasce de um golpe, né, o fenômeno Getúlio Vargas nasce de um assassinato e em sua ditadura, houve lá também umas queimas de arquivo.

Ano passado mataram uns 50mil, o filho do meu amigo do banco está numa cadeira de rodas por causa de um celular, e em 2007 roubaram meu carro. Mas ninguém liga, então vida que segue”.

Por outro lado, há ainda a maioria da população afastada dos grandes centros para quem os militares eram apenas figuras empombadas, ora proferindo disparates em coletivas, ora encarnando o exemplo de cidadão em atos cívicos.

Isso tudo pela tevê. Isso, para quem tinha tevê.

Causa espécie que a claque que tomou de assaltado a sala de comando da educação e da inteligência nacionais, muito ciosa de sua consciência social, seja incapaz de fazer um exercício de sociologia de ensino fundamental e notar que boa parte do país até meados dos anos 90 era uma espécie de cenário de Roque Santeiro ou de romance de Graciliano Ramos.

Era um microcosmo ordinário, provinciano, com aspirações modestas e cujas angústias não chegavam a ultrapassar os limites de sua própria cidade.

Veja-se como é comum que as gerações passadas saibam o nome dos colegas do primário, do padeiro, do borracheiro, do sapateiro, do médico, do barbeiro, da telefonista, da costureira de sua região.

Se um soldado passasse na rua, é provável que lhes pedisse um cigarro.

Cenário bem distinto da zona urbana, naquele tempo ainda mais tímida e limitada ao eixo RJ-SP, em que a Editora Civilização Brasileira, o Largo São Francisco, a Faculdade Nacional de Direito e tutti quanti ditavam o tom da conversação nas redações, nas cátedras e nos botecos, fazendo ferver os corações e mentes para a guerra cultural, ao passo que o grande público dançava ao som da jovem-guarda.

Não mudou muito. O interior, as cidadelas, os distritos e vilas continuam limitados, ora reverberando um iberismo inconsciente já sem origens, ora francamente matuto, cru e materialista. Mas sempre provinciano, apesar do celular, da Internet e da conurbação.

É como no poema de Drummond:

Eu não vi o mar.

Não sei se o mar é bonito,

não sei se ele é bravo.

O mar não me importa.

 

Eu vi a lagoa.

A lagoa, sim.

A lagoa é grande

E calma também.

 

Na chuva de cores

da tarde que explode

a lagoa brilha

a lagoa se pinta

de todas as cores.

Eu não vi o mar. Eu vi a lagoa.

Habituado aos limites da sua aldeia, a imensidão e a complexidade das cidades são para o homem do interior um mundo estranho, difícil de desvendar e até mesmo assustador.

Continuamos uma grande roça com ilhas de concreto e alguma sofisticação burguesa, onde a vaidade esquerdista do tapete vermelho bancado por banqueiro tem pouco ou nenhum valor.

É como se todos já tivessem assistido sem nem saber do que se trata.

Mas é significativo que, passados 40 anos do fim do regime militar, a bolha rica da cultura engajada tenha congelado no tempo, reacionária como não poderia deixar de ser, pois tratar do Brasil daí para diante, seria tratar do projeto de destruição que impuseram ao país.

Agora, o beautiful people, em sua alienação comunitária, renova o ânimo para mais 50 anos de pedantismo quixotesco, enquanto o povão cravejado de balas e polvilhado em cocaína, vai afundando ao som de “Nóis Vai Descer”.”

29.04.24

Finais

Foureaux

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Há muito tempo, já não me lembro se em São Paulo ou Rio de Janeiro – ainda estava na graduação – encontrei num sebo um livro. O nome da autora também já me escapou há tempos da memória. O que interessa é que o livro contava a história de Ceci e Peri, depois que chegam ao Rio da Janeiro, salvos da tempestade que fecha O guarani.

“A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente: 

— Meu Deus!... Peri!... 

Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura. 

Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até as raízes. 

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado. 

Luta terrível, espantosa, louca, desvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade. 

Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível: 

Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente. A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas. 

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema: 

— Tu viverás!... 

Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna. 

— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!... 

O anjo espanejava-se para remontar ao berço. 

— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...! 

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte. 

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. 

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo. 

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... 

E sumiu-se no horizonte.”

No livro que encontrei por acaso, o casal desembarca no Rio de Janeiro, constitui família e a história se alonga. Pensei nisso, depois de ver um filme intitulado Caso perigoso (Shattered, no original), de 2022, dirigido por Luis Prieto. O filme, em si mesmo, não é grande coisa, mas o final me fez lembrar do que escrevi acima. Pai e mãe feridos, a vilã do filme pronta para atacá-los e um tiro se ouve. A filha do casal atira na vilã. A tela fica preta. Fim. Fiquei pensando nos desdobramentos. Possíveis. O casal e a menina vão a julgamento, mas a coisa se complica porque se tratava de uma criança. Pai e mãe são acusados de usar filha no assassinato da vilã. A família é absolvida, dadas as circunstâncias do acontecido, mas tem dificuldades para reaver tudo o que a vilã havia roubado. O casa se reconcilia e a vida familiar segue sua normalidade. São possibilidades plausíveis tato quanto a continuação do romance entre Peri e Ceci. Isso faz parte do que se chama criação literária. Há quem desconheça esse valor...

13.12.23

Surpresa

Foureaux


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Conta a lenda que ao sair de seu retiro, feito depois do longo período de recuperação, fruto de suas leituras, Inácio de Loyola caminhou de volta a sua casa quando se deparou com um riacho. Nele, percebeu um brilho intenso. Meteu a mão na água, mas o brilho desapareceu. Tentava pegar a pedra que refletia o brilho. Debalde. Toda vez que tentava, o mesmo resultado: o lodo do riacho encobria o brilho. Tocado, então, pelo Espírito Santo, Inácio entendeu o que significava aquilo. O brilho era para ser contemplado, não, tocado. O nome do riacho é Cardoner. A passagem da biografia do Santo recebeu o nome de “Visão do Cardoner”. Salvo engano meu, é este o título que aparece na Autobiografia de Inácio. Esta é a minha visão – mantida pela memória de quase trinta anos desde a experiência jesuítica em Campinas. Claro está que ela responde ao ditado popular: quem conta um conto, aumenta um ponto. Trago esta passagem aqui para falar do carisma da Companhia de Jesus: contemplatio agendo, em tradução livre: contemplação nação. Não vou falar de Teologia, mas a referência é necessária para dar início à minha tergiversação sobre um filme que vi. O ato de vê-lo, no momento mesmo em que o vi, é expressão, imagino, do que se pode sentir quando se dá espaço para a vivência desse carisma. Talvez, em outras palavras, seja uma forma de tentar entender a revelação que 

Inácio, o santo, teve à beira do Cardoner. Essa iluminação causou-lhe “consolação, com certeza – pata usar um termo inaciano muito caro. Creio que senti-me como santo, quando da revelação à beira do Cardoner: consolado. É preciso esclarecer que o sentido desse adjetivo aqui, não é o corriqueiro, mais usual, senão o de completo, satisfeito, para além de maravilhado, feliz. Revelação. Esta é a palavra-chave aqui! Foi assim que me senti, pari passu, ao ver o filme, que não tem nada de extraordinário, a não ser pelo fato de que vai direto ao ponto, sem firulas. Trata-se de Nuovo Olimpo, de Ferzan Özpetek (2023). Não sou cineasta, nem teórico de cinema, apenas gosto de ver filmes. Assim, tenho a impressão de que o orçamento não foi gigantesco o que se nota pela produção que tem ares de modesta. Os atores são absolutamente desconhecidos do “meio”. São todos italianos. O filme se passa em Roma, se não me engano, nos anos 70 e conta a história de dois homens que se conhecem, se apaixonam, instantaneamente e t6em suas vidas atravessada por circunstâncias fora de seu próprio controle. O que me chamou a atenção é o fato de que o filme é romântico até a raiz dos cabelos (dos atores), mas não tem nada de piegas e muito menos estereotipado. Bem...a não se pelo fato de que há um “casamento” entre dois homens – um deles, um dos protagonistas da fita – e, por outro lado, o fato de o encontro se dar num cinema de pegação – quem quiser que vá procurar o que significa isso. Declino do direito de explicar o que seja... Fora isso, não há do que reclamar. A história se desenvolve leve, bem articulada, sem exageros, nem maneirismos, muito menos panfletagem. Esta é uma das mais fortes qualidades do filme: ele não serve de plataforma para militância. Seu discurso é pura e simplesmente estético, obviamente eivado de “realismo” sociopolítico, mas sem o viés de defender pautas e ou apoiar movimentos. A impressão que tenho é de que o diretor quis, simplesmente, contar sua história (Autobriográfica?). Contou-a de modo direto, sincero, bonito e muito, muito comovente. Está na Netflix. Vê quem quer. Vi e gostei. Foi uma experiência balsâmica no quadro atual da filmografia atual, diuturnamente preocupada em defender isso ou aqui, em “lacrar”, em “cancelar pessoas, reputações, tradições. Uma chatice. O filme é um oásis no deserto em que vem se transformando o cinema mundial.

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06.12.21

Um filme

Foureaux

Um tratado. No dicionário que consultei on line, esta palavra apresenta duas acepções. Como adjetivo, significa que o que se tratou; como substantivo masculino significa convenção, entre dois ou mais países, referente a comércio, paz, etc. No entanto, que eu saiba, há ainda uma outra acepção. Tratado (do termo latino tractatus) é um estudo formal, científico, de caráter acadêmico, fundamentado e sistemático sobre determinado assunto. É bem mais extenso que um ensaio devido às suas características acadêmicas, sempre se propondo a apresentar uma teoria acadêmica bem fundamentada, sendo, normalmente, publicado em formato de livro ou livros ou, ainda, bibliotecas, os mais extensos. Famosos tratados foram escritos por filósofos, cientistas, teólogosmísticos, militares, políticos, dentre muitos outros pensadores. Diferentemente do ensaio, que é um texto literário breve e informal, o tratado é algo mais complexo e formal. O ensaio, por sua vez, expõe ideias, críticas e reflexões éticas. Bem. Tudo seria mais simples se simples fosse. No entanto, do fundo de minha chatice, tenho que afirmar que um filme pode ser um tratado. Não vou justificar esta tese. Não vou explicá-la, nem sustentá-la com argumentos epistemológicos complexos e chatos, como eu. Vou apenas afirmar e o faço através da referência a um filme que vi há poucos dias. Trata-se de O cântico dos nomes (The song of names, Canadá/Restados Unidos, 2020, direção de François Girard). A história contextualiza-se na segunda guerra mundial, notadamente na tomada de Varsóvia pelas tropas nazistas. Claro está que a narrativa fílmica estica esse tempo, mas isso é um detalhe. O que me impele aqui é o fato de que o filme é um tratado sobre o homoerotismo. Um menino inglês é obrigado a dividir seu mundo doméstico com outro menino, este, judeu polonês, que é deixado em Londres pelo pai, à custa do reconhecimento da genialidade do virtuose, seu filho, violinista impecável. A tal narrativa vai enredar uma série de detalhes e situações e episódios. no fundo, o relato diz da relação homoerótica entre os dis garotos, depois adolescentes, jovens e adulto. Não é possível antever o desfecho, mas aa obviedade do afeto que envolve as duas personagens é algo inescapável. não há argumentos suficientes para derrubar esta tese. ambos se casam, constroem suas vidas, mas o afeto homoerótico subsiste, sem qualquer recalcamento, sem qualquer censura, abertamente, explicito como o ato de respirar e os sentimentos que povoam a vida das duas personagens. O drama da guerra, o mundo da música de então, as idiossincrasias culturais e sociais que são explicitados no filme não fazem sombra ao que, de fato, move a trama: o afeto que une o inglês e o judeu. Isso é irrecorrível. As turras da infância, as aventuras adolescentes, a persistência da vida adulta, fazem desse drama cinematográfico uma lição acabada e cabal do que se pode entender sobre homoerotismo. E não há sexo no filme, como poderiam antever as mentes menos desenvolvidas que sempre desejam reduzir tudo à mera panfletagem ativista. Não! Definitivamente, não! A beleza, a contundência e a delicadeza do tratamento da relação entre duas pessoas do mesmo sexo são inenarráveis. Só vendo o filme para constatar. Depois, a gente pode até conversar...

 

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