Abril 29, 2024
Foureaux
Há muito tempo, já não me lembro se em São Paulo ou Rio de Janeiro – ainda estava na graduação – encontrei num sebo um livro. O nome da autora também já me escapou há tempos da memória. O que interessa é que o livro contava a história de Ceci e Peri, depois que chegam ao Rio da Janeiro, salvos da tempestade que fecha O guarani.
“A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:
— Meu Deus!... Peri!...
Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, desvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade.
Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível:
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente. A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:
— Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!...
O anjo espanejava-se para remontar ao berço.
— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte.”
No livro que encontrei por acaso, o casal desembarca no Rio de Janeiro, constitui família e a história se alonga. Pensei nisso, depois de ver um filme intitulado Caso perigoso (Shattered, no original), de 2022, dirigido por Luis Prieto. O filme, em si mesmo, não é grande coisa, mas o final me fez lembrar do que escrevi acima. Pai e mãe feridos, a vilã do filme pronta para atacá-los e um tiro se ouve. A filha do casal atira na vilã. A tela fica preta. Fim. Fiquei pensando nos desdobramentos. Possíveis. O casal e a menina vão a julgamento, mas a coisa se complica porque se tratava de uma criança. Pai e mãe são acusados de usar filha no assassinato da vilã. A família é absolvida, dadas as circunstâncias do acontecido, mas tem dificuldades para reaver tudo o que a vilã havia roubado. O casa se reconcilia e a vida familiar segue sua normalidade. São possibilidades plausíveis tato quanto a continuação do romance entre Peri e Ceci. Isso faz parte do que se chama criação literária. Há quem desconheça esse valor...