Janeiro 31, 2023
Foureaux
Acabei de reler pela terceira ou quarta vez, já perdi a conta, um romance monumental: Os Maias, do Eça de Queiroz. Ou será Queirós? Queiróz? Talvez Queirós? Vai saber. Já estou definitivamente afastado dessas firulas ditas acadêmicas. Isso não tem a menor importância aqui. O que vale mesmo é o “peso” do livro, inclusive, em sentido literal. Longe de mim dizer que o tal “peso” denota desarranjo, dissabor, desprazer ou dificuldade. Longe mesmo! O romance é mesmo monumental e seu peso é de glória, de realização, de importância. É o que vale. Eça, neste romance, dá uma lição de ritmo narrativo. Ouso dizer que mais prazer me causou o tal ritmo em Raquel de Queiroz e em José Lins do Rego. Mas vá lá, no Eça, tem-se outro exemplo cabal de maestria no domínio desta peculiaridade narrativa. O primeiro capítulo (se não me engano um dos mais curtos do romance, se não o mais curto), corre ligeiro e coloca, de imediato, em cena, a estrela principal: Carlos da Maia. A seu lado, um pouco mais adiante, aparece aquela que, para mim é a outra personagem central, literalmente central, do romance: João da Ega. O dramatis personae composto pelas demais figuras narrativas que aparecem é apenas complementar, fundamental, mas complementa a centralidade acachapante de Carlos e João. Que dupla! Numa pincelada ágil, volátil, certeira, a vida de Pedro da Maia, a história de Pedro e o aparecimento de Carlos da Maia no cenário da Lisboa de sempre – sob a pena do escritor português – se dá, aparentemente, num estalo se comparada ao restante dos episódios que vão sendo cirurgicamente costurados pela voz narrativa que tudo sabe, tudo vê, tudo explica. A ironia do autor, obviamente, dá o ar de sua graça. Nessa releitura, não fiz como na imediatamente anterior. Nesta, procurava reencontrar uma cena em particular: Carlos da Maia vai à casa de João da Ega e o encontra a sair do quarto onde está outro rapaz. A cena, se a minha memória não me trai, é rapidíssima e não apresenta – ainda uma vez, aparentemente – nenhum desdobramento inescapável para a economia do romance. Eu digo isso sob a égide de uma perspectiva particular de leitura, o que não invalida as outras, por um lado. Por outro, esta mesma perspectiva intenta descortinar novos horizontes de expectativas para a mesma fortuna crítica do romance. Ocorre que chegou aos meus ouvidos um alerta sobre alguém que se sentiu “curioso” com a referida cena. Devo confessar que quando da penúltima leitura, não consegui localizar a dita cuja. Nesta última, a partir da qual escrevo hoje, isso não estava nas minas intenções subliminares, mas, confesso, foi superado por uma surpresa ainda maior. Mais tarde volto a isto. Pois então, o tal alerta apontava para a cena a que me referi no sentido de estranhar que um autor como Eça pudesse deixar entrever um resquício que fosse de algo fora dos padrões morais e socioculturais de sua época. Esta é a segunda parte do que vou tratar daqui a pouco. Voltando à leitura atual, há de ratificar a extrema acuidade com que Eça monta seu quebra-cabeça ficcional. O enredo fala de um casamento fortuito e circunstancial (Pedro e Maria Monforte, a negreira), sob o olhar embevecido de seu pai (Afonso da Maia). O universo masculino preponderante, apresenta, então, nesta altura da narrativa, um quadro ínfimo de personagens femininas, todas elas acessórias, decorativas. No segundo passo do romance, quando Carlos se forma, e retorna de uma viagem longa para complementar sua “formação, o quadro feminino é acrescido de outras figuras femininas, eu diria, igualmente decorativas, com exceção da Gouvarinho – que colabora para a exposição de tese interessante sobre o comportamento masculino e feminino numa Lisboa em fase de transição sociocultural. Nesta altura, a atenção do leitor se volta para a evolução moral de sua estrela principal, Carlos da Maia, até o momento em que conhece Maria Eduarda. Já estamos no terceiro passo do romance. Nesta fase, a “maturidade” afetiva de Carlos parece estar consolidada. É quando se percebe, subliminarmente, que Carlos não trabalha, mas vive das rendas da família, numa abundância digna dos detalhes concebidos e outorgados pelo autor. Ao chegarmos ao passo final, o desenlace se dá de maneira trágica: a descoberta do incesto, por conta de uma “peripécia” do passado dos Maias, segredo guardado a sete chaves pelo avô, patriarca. Maria Monforte junta-se com um nobre italiano e abandona Pedro, que se mata. Do casamento com o português, nascem dois filhos: Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Na fuga, a adúltera vai para Paris levando a filha. Anos depois, tem outra filha, em Londres, que morre. Deixa chegar aos portugueses a notícia de sua morte, mas sem esclarecer que se trata da segunda filha. Está armado o circo – será que ela fez de propósito? – para os que ficaram em Lisboa. Com o passar do tempo, o fatídico acontece propiciando o encontro e o envolvimento amoroso – sério, profundo – entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda, irmãos, mas ignorantes do fato. O final não poderia ter sido outro. O patriarca morre de desgosto – ainda que o Vilaça assevere que foi consequência de patologia cardíaca – Carlos Eduardo desfaz o compromisso com Maria Eduarda que vai para Paris e... aí é que mora o busílis. A minha surpresa nesta releitura. Se a cena em que João da Ega sai de seu quarto deixando lá um rapaz sob o olhar desconfiado de Carlos é um tanto instigante, o final do romance, ousaria concluir, é definitivo. Como disse antes, as mulheres, neste romance, desempenham papel decorativo. O mundo masculino é o cenário ideal pintado pela pena do escritor português que, através dele, esmiúça as entranhas da sociedade portuguesa, mais uma vez, com finalidade não explícita. Por isso, eu disse, o peso do romance. Ele deixa a cargo do leitor- mas nem tanto – a função de terminar o real sentido de suas insinuações. É nesta perspectiva que me admiro, positivamente com o final do romance. De certa forma, ele comtempla e confirma dúvida que paira quando da cena do quatro do João da Ega. No final do romance, depois de superadas as perdas e resolvidas as questões, digamos, práticas do imbróglio em que se meteu Carlos da Maia, ele e seu “fiel” amigo fazem uma longa viagem juntos. E não há referência à presença fundamental de mulheres, ainda que se possa, com toda tranquilidade, intuir que elas estarão presentes no périplo dos dois amigos. Na volta, quando de uma visita ao ramalhete, lá estão os dois, de novo, sós, um e outro, a combinar pândegas. E o romance acaba com uma corrida para pegar o comboio que os vai levar a mais uma de suas “farras” com os “rapazes” finos da então nobre sociedade portuguesa. Mais não digo...