Outubro 28, 2024
Foureaux
E la nave va... Adoro esta expressão italiana, título de um filme pra lá de esquisito do Federico Fellini (1983). Em Portugal chamou-se O navio (mais apropriado, eu diria... ainda que em Português do Brasil não perca o senso. Esta é mais uma de suas chatices, para quem ainda não percebeu...). Tudo no filme parece falso, é inusitado, e os desempenhos são pra lá de... esquisitos. Ai que preguiça de procurar outra palavra. De um jeito ou de outro gostei do filme. Tanto quanto gostei da postagem que aqui faço hoje. Ando numa maré de pensar e repensar. Tenho todo o tempo do mundo – blague paupérrima de um poeta que faz sucesso por aí (pasmem... um poeta! Sucesso!... Bah!) O texto da postagem é um exercício de estilo, ainda que muitos hão de torcer o nariz para tal desfaçatez (de minha parte). Não importa. É menos um dia sem fazer nenhuma postagem... O tempo foge...
Um escritor me disse.
PROPAROXÍTONAS
Há dois tipos de palavras: as proparoxítonas e o resto.
As proparoxítonas são o ápice da cadeia alimentar do léxico.
Estão para as outras palavras assim como os mamíferos para os artrópodes.
As palavras mais pernósticas são sempre proparoxítonas. Das mais lânguidas às mais lúgubres. Das anônimas às célebres.
Se o idioma fosse um espetáculo, permaneceriam longe do público, fingindo que fogem dos fotógrafos e se achando o máximo.
Para pronunciá-las, há que ter ânimo, falar com ímpeto - e, despóticas, ainda exigem acento na sílaba tônica!
Sob qualquer ângulo, a proparoxítona tem mais crédito.
É inequívoca a diferença entre o arruaceiro e o vândalo.
O inclinado e o íngreme.
O irregular e o áspero.
O grosso e o ríspido.
O brejo e o pântano.
O quieto e o tímido.
Uma coisa é estar na ponta – outra, no vértice.
Uma coisa é estar no topo – outra, no ápice.
Uma coisa é ser fedido – outra é ser fétido.
É fácil ser valente, mas é árduo ser intrépido.
Ser artesão não é nada, perto de ser artífice.
Legal ser eleito Papa, mas bom mesmo é ser Pontífice.
(Este último parágrafo contém algo raríssimo: proparoxítonas que rimam. Porque elas se acham únicas, exóticas, esdrúxulas. As figuras mais antipáticas da gramática.)
Quer causar um impacto insólito? Elogie com proparoxítonas.
É como se o elogio tivesse mais mérito, tocasse no mais íntimo.
O sujeito pode ser bom, competente, talentoso, inventivo – mas não há nada como ser considerado ótimo, magnífico, esplêndido.
Da mesma forma, errar é humano. Épico mesmo é cometer um equívoco.
Escapar sem maiores traumas é escapar ileso – tem que ter classe pra escapar incólume.
O que você não conhece é só desconhecido. O que você não tem a mínima ideia do que seja – aí já é uma incógnita.
Ao centro qualquer um chega – poucos chegam ao âmago.
O desejo de ser uma proparoxítona é tão atávico que mesmo os vocábulos mais básicos têm o privilégio (efêmero) de pertencer a esse círculo do vernáculo – e são chamados de oxítonos e paroxítonos. Não é o cúmulo?
(EDUARDO AFFONSO, arquiteto, escritor e colunista do jornal "O Globo" (publicado em 2020 – Leituras Livres)