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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

03.04.23

Disperso

Foureaux

Mexendo numa pasta de arquivos do/no computador, deparei-me com este texto. Eu mesmo o escrevi. O título do livro a que me refiro aqui escapa-me. Já não sou capaz de localizar na memória o título e a autoria. Gostei de tê-lo escrito, caso contrário não o teria enviado para publicação. No enfado de começar mais um mês do ano sem qualquer perspectiva de dinamizar minha escrita, resolvi publicá-lo aqui no blogue...

PREFÁCIO

Este é um livro de poesia. A forma dos poemas constantes deste livro é única, em seus dois sentidos: todos os poemas se estruturam do mesmo jeito neste livro e esta forma não encontra similar, ou uma forma gêmea, portanto, esta é forma única. Então, nada melhor que começar com uma poesia, mais precisamente, parte de uma poesia. Ainda um pouco mais especificamente, a última estrofe de um poema:

E, inda tonto do que houvera,

à cabeça, em maresia,

ergue a mão, e encontra hera,

e vê que ele mesmo era

a Princesa que dormia.

Não. Não vou fazer a exegese dos versos de Fernando Pessoa. Esta não é minha missão. Ainda que fosse, penso que não seria suficientemente capacitado para fazê-lo aqui. No entanto, os versos do poeta português são lembrados para suscitar uma ideia: a de sugestão, por metonímia. Não podia ser de outra forma! Os últimos versos de “Eros e Psiquê” – este é o nome do poema – me fazem considerar a ideia de sugestão. O sujeito poético devaneia (“inda tonto do que houvera / à cabeça em maresia”) que buscava uma princesa e, ao final de sua busca, sob a sugestão do desejo que o move constata diferentemente “que ele mesmo era / a Princesa que dormia”! Um exemplo bastante ilustrativo do poder da sugestão. Digo isso pois, penso, no contexto deste livro, que uma ideia pode sugerir diversas e multifacetadas expressões.

Não é dado à capacidade humana, por mais desenvolvida que seja, afirmar absoluta e terminantemente o que quer que seja a partir de uma ideia. Ao contrário, tudo o que se diga vai sempre ser eclipsado por essa figura misteriosa, a da sugestão. Um cheiro não tem o mesmo efeito para todos os narizes. Um jardim diante de uma residência não vai receber a mesma admiração de todas as pessoas que passam diante da mesma residência. Arrisco-me a dizer que nem mesmo todos os moradores da casa diante da qual está o jardim têm a mesma opinião, reagem da mesma forma, enxergam o jardim da mesma maneira. Este é o poder absoluto e inescapável da sugestão. Creio que esta ideia pode muito bem servir de bastião para a leitura que se faz convite nestas primeiras linhas. Afinal isto aqui é um prefácio.

No dicionário, prefácio é um substantivo masculino que nomeia texto preliminar de apresentação, geralmente breve, escrito pelo autor ou por outrem, colocado no começo do livro, com explicações sobre seu conteúdo, objetivos ou sobre a pessoa do autor. De certa forma, é um resumo do conteúdo de um livro, exibindo exemplificações de capítulos e narrando o que está introduzido neles. Um prefácio, eventualmente, contém algumas impressões de terceiros sobre a obra. Nele, o autor busca instigar o interesse do leitor para o livro, trazendo um ar de curiosidade. Nem todas as palavras acima são minhas. Faço-as assim para deixar claro que não vou fazer literalmente o que o verbete sugere. Sou um chato. A única exceção está circunscrita a uma das “utilidades” do prefácio: “instigar o interesse do leitor para o livro”. Punto i basta!

Seguindo a inflectiva ideia de sugestão, considero que a ideia de “estações”, coincidentemente o título do livro, é rica em nuances semânticas e imagéticas, assaz sugestivas. Pode ser que muita gente já tenha pensado nas estações da Via Crucis. Esta é uma via inteligente e plausível na miríade de associações possíveis. As estações do ano seguem o mesmo itinerário, não resta dúvida. Estações ao longo de uma estrada, de uma via férrea, entre as ondas do mar. Tantas sugestões... Quero crer, assumindo o risco de uma redução, que a ideia de estações do ano predomina aqui. Então, recorro à Mitologia.

Deméter era a deusa do trigo e, de um modo geral, de toda a terra cultivada. Senhora dos cereais. Os romanos lhe deram o nome de Ceres. Parece ter sido uma sugestão bem sucedida! Da sua união com Zeus, teve uma filha, Perséfone, que cresceu, muito bela e feliz, na companhia das ninfas e de duas meias‑irmãs, as deusas Ártemis e Atena. Hades, o deus dos infernos, que era irmão de Zeus e, portanto, seu tio, apaixonou-se perdidamente por ela. Um dia, quando a jovem passeava despreocupada pelos prados verdejantes, ao colher uma flor, a terra abriu-se de repente e Hades surgiu para a raptar e levar consigo para o mundo inferior onde reinava. Deméter ouviu os gritos de aflição da filha e correu para a ajudar, mas nada pôde fazer. Nem sequer sabia onde ela estava nem quem a tinha levado. Desesperada, começou a percorrer o mundo em busca da filha, sem comer nem beber, sem se preocupar com o seu aspeto nem tratar de si, sem cuidar de nenhuma das suas tarefas. Acabou por conseguir que o Sol, que tudo vê, lhe revelasse quem fora o raptor da filha. Decidiu então não mais voltar ao Olimpo, a morada dos deuses, e renunciou às suas funções divinas até que a filha lhe fosse devolvida. A terra foi ficando estéril e os homens com fome, pois as culturas secaram e morreram. Tudo era devastação e abandono. Então Zeus, responsável pela ordem no mundo, preocupado com a calamidade causada por Deméter, ordenou a Hades que devolvesse Perséfone. A jovem, porém, por fome ou instigada por Hades, comera já um bago de romã no mundo das sombras e esse pequeno gesto ligara-a para sempre ao reino do marido. Teve então de se chegar a uma solução de compromisso e a um acordo: Perséfone passaria metade do ano com a mãe, no Olimpo, e a outra metade com o marido, no mundo dos infernos. Assim, quando Deméter tem a filha ao pé de si, está feliz e a natureza floresce: é o tempo da primavera e do verão. Mas quando Perséfone tem de regressar para junto de Hades, Deméter mergulha de novo na maior tristeza: começa então o outono, vem depois o inverno e a desolação na natureza. E é essa a causa do ciclo das quatro estações. Com essa digressão, creio eu, fica chancelada a sugestão que percorre boa parte das aldravias aqui reunidas!

Para bem aproveitar qualquer possibilidade, acredito, há que se ter certa dose de maioridade intelectual. E aqui vai outra “sugestão”. No dicionário, maioridade é identificado como substantivo feminino que nomeia a idade legal em que uma pessoa é reconhecida como plenamente capaz e responsável. No Brasil, isso se dá aos 21 anos. Ora, este livro é parte comemorativa dos 21 anos do Movimento Aldravista de Artes. Em outras palavras, o movimento alcançou sua maioridade. Neste patamar, já tem autonomia de afirmação de seus valores e prerrogativa de defesa de suas propostas e criações. As aldravias aqui reunidas são prova inconteste disso. Resta a celebração que, no caso, dá-se por meio das páginas aqui apresentadas, recheadas que estão de aldravias, o núcleo poético da proposta original. Também por essa trilha é possível ler o conjunto de poemas aqui concertado.

Por fim, quero crer que de maneira bastante coerente, a celebração envolve uma tonalidade menos vibrante, como a particularizar o movimento andante na música. É preciso lembrar que um “movimento” é iniciado, dinamizado e mantido por pessoas. Sua criação, no caso específico, as aldravias, são uma espécie de “prova” de sua própria existência como membros de um silogeu. O livro é este espaço, mais que apropriado. Surge então a oportunidade de considerar outra sugestão: a memória.

Como capacidade de adquirir, armazenar e recuperar (evocar) informações disponíveis, seja internamente, no cérebro (memória biológica), seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial), a tal de memória é instrumento de uma série de manifestações e volições. O conjunto de aldravias neste livro é prova material de uma dessas manifestações. Em certa medida, os poemas aqui reunidos expressam, mesmo que inconscientemente, a memória individual de cada um de seus criadores, coautores, participantes do mesmo silogeu, mesmo que simbolicamente representado pelo livro. Por via de consequência, o mesmo pode ser considerado prova de certa memória coletiva e, por que não, afetiva. Neste caso, trata-se de celebração do que se foi, do que deixou marcas. Mesmo que não explicitamente, a coleção de aldravias celebra, de maneira sensível, em forma de homenagem, a memória de Cláudio Márcio Barbosa e Nivaldo Resende, falecidos este ano. Ambos contribuíram para a cultura, a literatura, especialmente à promoção da Arte Aldravista. Não é preciso que esta homenagem esteja a brotar visível e materialmente nos versos univocabulares que compõem as aldravias aqui reunidas. A celebração está dada, no reconhecimento da participação de ambos no processo de maturação da arte aldravista. Não pode haver homenagem mais explícita e honrosa.

Retomando o início de minhas palavras, várias são as “estações” representadas neste livro homônimo. Devem ter notado que não destaquei nenhum dos poemas aqui reunidos. Fiz isso por prezar a sutileza da leitura. Se digo alguma coisa, corro o risco de ser acusado de induzir o leitor desse livro a erro. Por outro lado, pode ser que haveria quem me agradecesse pela indicação desse ou daquele poema, na consideração particularizada que porventura tivesse eu feito. Não. Definitivamente não! Eu termino como comecei: com versos de um poema. Desta feita, o poeta é José Régio:

A minha glória é esta:

criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

Que eu vivo com o mesmo sem vontade

com que rasguei o ventre à minha mãe.

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

me levam meus próprios passos...

Os últimos versos de “Cântico negro” – um poema belíssimo, contundente – dizem exatamente como me sinto ao concluir este prefácio. Não acrescento mais ideia alguma. Faço apenas um convite: leiam o livro. E desejo apenas uma coisa: que tenham prazer em fazê-lo!

Ave, Verbum! Ave, Poetica!

José Luiz Foureaux de Souza Júnior

Contagem, Outono de 2021

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