Agosto 18, 2022
Foureaux
Que livro duro.
Que livro triste.
Que livro soberbo!
Faz mais ou menos 45 anos, na Rua Ricardo Tim, em Campinas, conversava com o Rogério, cearense do Crato, noviço do segundo ano. Depois do almoço, era praxe um papinho na “sala de jogos”, ouvindo música – com ele, apenas a erudita. No dia desta conversa, o concerto número 4 para piano e orquestra de Beethoven. Foi a primeira vez. Deslumbramento. Foi o primeiro ame falar de Literatura, de um modo que me fascinou. Perguntou o que eu achava de Graciliano Ramos. EU disse que era um escritor seco, chato e sem graça. Tinha lido dele apenas Vidas secas, no ginásio, por obrigação, para fazer as famigeradas – hoje extintas – provas de leitura. Não gostei. Ele riu muito. Disse que com três palavras destruí décadas de literatura. Continuamos a conversa e no final ele aconselhou-me a ler Caetés, Memórias do Cárcere e Angústia. Não me lembro se, necessariamente, nessa ordem. Depois de ler os romances indicados – no noviciado, a biblioteca tinha bons e vários títulos em seu acervo – voltamos a conversar. Discutimos muito, falamos de outros autores até que ele viajou ara uma “missão”. Depois disso, ele foi para o Rio de Janeiro, fazer a Filosofia, quando foi expulso da Companhia de Jesus porque lia muito e ficava no quarto estudando, em lugar de jogar conversa fora com outros noviços. Hoje é doutor em Teologia e Filosofia, leciona Filosofia na FASBAM, em Curitiba. Devo a ele, e depois Jose Carlos Barcellos– oportunamente, supervisor de meu primeiro estágio pós-doutoral, que em paz descanse! – a minha iniciação nos estudos de Literatura. Pois então. Reli o tal Vidas Secas. As três primeiras expressões desta postagem, bem diferentes daquela que apresentei ao Rogério, revelam o que sinto hoje, depois da releitura. A densidade do romance é mais que inquestionável. A saga de Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e Baleia é alguma coisa de, simultaneamente, delicado e aterrador. Delicado, porque o autor vai às entranhas de seres que vivem por pirraça, dadas as inumanas condições de sobrevivência a que se vêm expostos. Curioso notar que, na série inicial dos romances de Graciliano Ramos, este é o primeiro a não tocar no tópico do escrever. Este é um ponto que poderia sugerir caminhos para construção de um problema de análise a ser equacionado numa dissertação ou possivelmente resolvido – no mínimo, analisado – numa tese. A dureza da existência de Fabiano não deixa espaço para esse tipo de elucubração. No entanto, seu final, ao sonhar com Sinhá Vitória com as consequências positivas de uma sonhada chuva que, aparentemente, se anuncia, é de um lirismo que beira a esquizofrenia. O contraste com a realidade é abissal. O impossível se manifesta como tábua de salvação para um homem que, a certa altura do romance, pensou em matar seu próprio filho, por conta do trabalho que dava carregá-lo durante a caminhada sertão afora, ou adentro... A travessia, aqui, não tem nada de, digamos, messiânica, como em Guimarães Rosa – pelo menos, penso nesta possibilidade de leitura, ainda que eu não seja um “especialista”. Afinal o que é mesmo um especialista? Ou seria, “especialiste” para subscrever a boçalidade ignorante que grassa a seara pública de quem se diz “antenado” ... Voltando ao que interessa... As idas e vindas morais e éticas de Fabiano deparam-se com obstáculos quase intransponíveis, como quando de seu entrevero com o soldado amarelo. Num “segundo round”, a luta parece concluir-se, para não dizer que a vingança incruenta encontra sua realização. O que interessa, no fundo, é perceber como a dureza da caatinga e da seca não destroem o senso de humanidade e a percepção do que é certo e do que é errado, no universo crestado em que sobrevive o protagonista do romance. Ou deveria dizer um dos protagonistas? A dúvida procede, dado que cada capítulo é dedicado a cada um dos personagens – até a cadela Baleia e o horizonte coberto de aves (agourentas?) – como no capítulo “O mundo coberto de penas” – entram nesta galeria. Assim sendo, cada uma das personagens poderia ser considerada protagonista. O desejo de uma cama de couro, que sustenta a esperança de Sinhá Vitória ou a peleja do menino mais velho com a cabra podem ser lidos como índice do que mencionei acima como esquizofrenia. Nada, no comportamento das personagens pode ser interpretado literalmente, ainda que seja inegável a grandeza e contundência da narrativa. As “condições” de sobrevivência não permitem. Indo por esse caminho, a construção de Fabiano, em certa medida, repete – e esta repetição aqui reveste-se de caráter psicanalítico, portanto, em nada, pejorativa – os passos de outras personagens “centrais”, como nos romances publicado antes de Vidas secas. No projeto de releitura que tenho posto em marcha – o ócio criativo permite esses deleites, hoje absolutamente desconhecidos do pétit monde acadêmico –, só posso fazer esta retrospecção. Pretendo chegar ao fim de todos os romances, tentando observar se esta linha de raciocínio se sustenta. A vontade, no fundo, é a de escrever um ensaio, longo e alentado, procurando delinear linhas de força na/da narrativa de Graciliano. No entanto, preguiça prima dileta do ócio me faz lembrar da quase inutilidade de fazê-lo: que editora se disporia a publicar tal ensaio? Depois de publicado, quem, de fato lê-lo-ia (Adoro mesóclise!)? Há outras dúvidas. As respostas, subliminarmente, eu já sei. Mas fico por aqui, pensando nas perguntas. Vida secas, de fato, é uma peça cuja dramaticidade sobeja requinte e sinceridade. Por isso, duro, o livro, e triste. Na mesma medida vai seu caráter irrecorrivelmente estupendo. não repito o que já se sabe da concisão e personalidade da linguagem de Graciliano Ramos. Deixo de lado as elucubrações consideradas “sociológicas” – daquelas que ficam borboleteando entre questões “políticas” e de “gênero”, veleidades de quem “goza” coma redução de universos ficcionais a estreitos perímetros de equivocada leitura –, por pura preguiça de ter que apontar, nelas, descaminhos, falácias e muita, mas muita falta de leitura. Assim, termino. Calo-me e recolho-me à minha insignificância.