Fazendo uma limpeza no computador, deparei-me com o texto que segue. Não é de minha autoria., por isso, as aspas. Fato é que gostei do seu conteúdo, daí a partilha. Fala de Literatura – assunto de que gosto imenso. Mesmo aposentado e, conforme o adagiário, “afastado de Deus” no que tange às lides “acadêmicas”, continuo um interessado contumaz sobre o assunto. Tomara que o tédio não tome conta dos olhos de quem se dispuser a ler...
“A ideia de senso comum cria – aparentemente de forma ‘natural’ – certo conflito. O discurso corrente sobre a literatura, que designa os pontos de referência para uma teorização, como acontece aqui, na abordagem de um texto constituído a partir da correspondência entre dois poetas, está sujeito, na sua base, a alguns questionamentos, haja vista o exame de pressupostos relativamente a certo número de noções fundamentais. Todo discurso sobre a literatura assume posição implícita e/ou explícita em relação a seu objeto. O ‘caso’ das cartas não é diferente.
Um balanço, um mapa, da teoria, literária seria, entretanto, concebível? E de que forma? Não seria esse um projeto abortado se, como afirma Paul de Man, ‘o principal interesse teórico da teoria literária consiste na impossibilidade de sua definição’?
A teoria não poderia, então, ser apreendida senão graças a uma teoria negativa, segundo o modelo desse Deus escondido do qual somente uma teologia negativa pode falar. Isso significa situar o horizonte alto demais, ou longe demais as afinidades, aliás reais, entre a teoria literária e o niilismo. A teoria não pode se reduzir a uma técnica nem a uma pedagogia – ela vende sua alma nos vade-mécum de capas coloridas expostos nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin –, mas isso não é motivo para fazer dela uma metafisica nem uma mística. Não a tratemos como uma religião. A teoria literária não teria senão um ‘interesse teórico’? Não, se estou certo ao sugerir que ela e também, talvez essencialmente, critica, opositiva ou polêmica.
Porque não é do lado teórico ou teológico, nem do lado prático ou pedagógico, que a teoria me parece principalmente interessante e autêntica, mas pelo combate feroz e vivificante que empreende contra as ideias preconcebidas dos estudos literários, e pela resistência igualmente determinada que as ideias preconcebidas lhe opõem. Esperaríamos, talvez, de um balanço da teoria literária, que depois de ter oferecido sua própria definição de literatura, como definição condestável – trata-se, na verdade, do primeiro lugar-comum teórico: ‘O que é a literatura?’ –, depois de ter prestado uma rápida homenagem as teorias literárias antigas, medievais e clássicas, desde Aristóteles até Batteux, sem esquecer uma passagem pelas poéticas não-ocidentais, arrolasse as diferentes escolas que compartilharam a atenção teórica no século XX: formalismo russo, estruturalismo de Praga, New Criticism norte-americano, fenomenologia alemã, psicologia genebresa, marxismo internacional, estruturalismo e pós-estruturalismo franceses, hermenêutica, psicanalise, neo-marxismo, feminismo etc. Inúmeros manuais são assim: ocupam os professores e tranquilizam os estudantes. Mas esclarecem um lado muito acessório da teoria.
Ou até mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a caracteriza, na verdade, e justamente o contrário do ecletismo, e seu engajamento, sua vis polêmica, assim como os impasses a que esta última a leva sem que ela se de conta. Os teóricos dão a impressão, muitas vezes, de fazer criticas muito sensatas
contra as posições de seus adversários, mas visto que estes, confortados por sua boa consciência de sempre, não renunciam e continuam a matraquear, os teóricos se põem também eles a falar alto, defendem suas próprias teses, ou antíteses, até o absurdo, e, assim, anulam-se a si mesmos diante de seus rivais
encantados de se verem justificados pela extravagância da posição adversária. Basta deixar falar um teórico e contentar-se em interrompê-lo de vez em quando com um ‘Ah!’ um pouco debochado, para vê-lo desmoronar diante de nossos olhos!
Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet, nosso velho professor de latim-francês, que era também prefeito de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada texto de nossa antologia: ‘Como vocês compreendem essa passagem? O que o autor quis dizer? Onde está a beleza do verso ou da prosa? Em que a visão do autor e original? Que lição podemos tirar daí?’ Acreditamos, durante um tempo, que a teoria literária tivesse banido para sempre essas questões lancinantes. Mas as respostas passam e as perguntas permanecem.
Estas são mais ou menos as mesmas. Ha algumas que não cessam de se repetir de geração em geração. Colocavam-se antes da teoria, já se colocavam antes da história literária, e se colocam ainda depois da teoria, de maneira quase idêntica. A tal ponto que nos perguntamos se existe uma história da crítica literária, como existe uma história da filosofia ou da linguística, pontuada de criações de conceitos, como o cogito ou o complemento. Na crítica, os paradigmas não morrem nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou menos pacificamente e jogam indefinidamente com as mesmas noções que pertencem a linguagem popular. Esse é um dos motivos, talvez o principal motivo, da sensação de repetição que se experimenta, inevitavelmente, diante de um quadro histórico da crítica literária: nada de novo sob o sol. Em teoria, passa-se o tempo tentando apagar termos de uso corrente: literatura, autor, intenção, sentido, interpretação, representação, conteúdo, fundo, valor, originalidade, história, influência, período, estilo etc. E o que se fez também, durante muito tempo, em lógica: recortava-se na linguagem cotidiana uma região linguística dotada de verdade. Mas a lógica formalizou se depois. A teoria literária não conseguiu desembaraçar-se da linguagem corrente sobre a literatura, a dos ledores e dos amadores. Assim, quando a teoria se afasta, as velhas noções ressurgem intocadas. É por serem ‘naturais’ ou ‘sensatas’ que nunca não escapamos delas realmente? Ou, como pensa de Man, é porque só desejamos resistir a teoria, porque a teoria faz mal, contraria nossas ilusões sobre a língua e a subjetividade? (...) Objetividade, gosto e clareza, Barthes assim resumia, cm Critique et Verite [Crítica e Verdade], em 1966, ano mágico, os dogmas do ‘suposto crítico’ universitário, o qual ele queria substituir por uma
‘ciência da literatura’. Há teoria quando as premissas do discurso corrente sobre a literatura não são mais aceitas como evidentes, quando são questionadas, expostas como construções históricas, como convenções. Em seu começo, também a história literária se fundava numa teoria, em nome da qual eliminou do ensino literário a velha retórica, mas essa teoria perdeu-se ou edulcorou-se a medida que a história literária foi se identificando com a instituição escolar e universitária.
O apelo a teoria é, por definição, opositivo, até mesmo subversivo e insurrecto, mas a fatalidade da teoria é a de ser transformada em método pela instituição acadêmica, de ser recuperada, como dizíamos. Vinte anos depois, o que surpreende, talvez mais que o conflito violento entre a história e a teoria literária, é a semelhança das perguntas levantadas por uma e por outra nos seus primórdios entusiastas, sobretudo esta, sempre a mesma: ‘O que é a literatura?’
Permanência das perguntas, contradição e fragilidade das respostas: dai resulta que e sempre pertinente partir das noções populares que a teoria quis anular, as mesmas que voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de não só rever as respostas opositivas que ela propôs, mas também tentar compreender por que essas respostas não resolveram de uma vez por todas as velhas perguntas. Talvez porque a teoria, a custa de sua luta contra a Hidra de Lerna, tenha levado seus argumentos longe demais e eles tenham se voltado contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes, é preciso recomeçar com as mesmas figuras de bom senso e clichês irreprimíveis, com o mesmo pequeno número de enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso corrente sobre a literatura. Examinarei alguns, os mais resistentes, porque é em torno deles que se pode construir uma apresentação simpática da teoria literária com todo o vigor de sua justa cólera, da mesma maneira como ela os combateu – em vão.”