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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

23.04.25

Coincidências (?)

Foureaux

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Dizem por aí que, numa alcateia, os primeiros dois ou três lobos, são os mais velhos. Vão À frente pela sabedoria e “conhecimento” acumulado com os anos. São Guias certos, seguros e equilibrados. Em seguida, uns cinco lobos mais novos e fortes. Seguem, aqueles mais novos que vêm acompanhados por cinco outros, do grupo dos mais fortes. Por fim, vem o que se logrou denominar o “machio alfa”, o líder. Sim, ele vem no fim, para não deixar nenhum dos lobos para três e saber que todos seguem, seguros e determinados, à sua frente. Esta é a lógica da alcateia e parece ser a mesma lógica que domina o desempenho do camarlengo no filme Conclave, um filme britânico-estadounidense de suspense e mistério de 2024, dirigido por Edward Berger e escrito por Peter Straughan, baseado no romance de 2016, de Robert Harris. O filme é estrelado por Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castellitto e Isabella Rossellini. Bem, “suspense e mistério” é por conta de quem escreveu as últimas linhas (copiei da “rede”). No entanto, é preciso que se diga, que, em certa medida a lógica da alcateia, no que diz respeito ao papel do líder, pode ser percebida no desempenho do camerlengo, como já disse. Porém, o desenvolvimento da narrativa fílmica acaba por abandonar a abordagem nesta perspectiva para anunciar uma outra que vai culminar numa revelação estupefaciente. Tive a mesma reação que no filme de Almodóvar, A pele que habito. Neste caso, a certa altura, uma pequena e rápida cena, constituída, se não me falha a memória, por um “sim”, faz perceber o que realmente se passa e que ficou encoberto por nuvens e nuances de pensamento que faziam perder o sentido do discurso imagético. No caso de Conclave, tive a mesma reação. Bem no finalzinho do filme. Quem viu, vai saber do que estou falando. Quam não viu, vai ter que ver para descobrir... De um ou de outro modo, resta a certeza da “oportunidade” do filme – quando vi, evidentemente, porque não posso super que o diretor tenha o dom da profecia... – ao vê-lo um dia depois do passamento de Francisco, papa polêmico, que dividiu opiniões e que não foi objeto de consenso, em nenhum momento de eu pontificado. Não sei, ao certo, que atitude tomar diante desta personalidade. Costumo dizer que, mesmo depois de sua morte, sinto-me dividido em relação a ela. Eu não me esqueço, jamais, de que minha opinião pouco importa, ou, como se diz no “popular”: quem sou eu na fila do pão... De tudo, fica a impressão, respaldada em dúvida abissal, de que o conclave, como processo, é mesmo uma guerra, como diz uma personagem do filme homônimo, impecavelmente vivida por Stanley Tucci. Eu ousaria dizer que uma guerra de egos, fogueira das vaidades, para blaguear título de livro e filme de outros tempos. Fica, então, a dica: vejam o filme. Está no Amazon Prime Vídeo. Ad sumus...

conclave.jfif

03.04.25

Dualidades

Foureaux

Dualidade.jfif

Acabo de ler, numa postagem de um blogue português em que estou inscrito, a seguinte “chamada”: Como começar a ler Murakami. Por alguns segundos fiquei na dúvida: caio na gargalhada ou irrito-me. Escolha nada difícil... Por um lado, pode parecer petulância, por outro, estupidez. Entre os dois, meu coração balança. Como é que se chegou a pensar na possibilidade (esdrúxula) de se arvorar na empáfia de saber como iniciar a leitura de um livro. Pra fim de conversa (que mal começou!) eu mesmo respondo: abrindo o livro e lendo! Punto i basta. Esse desvio de rota me traz a dois poemas que aí seguem:

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte

************************************************************************************

Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem que morrer pra pagar?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?

O primeiro é do Ferreira Gullar, o segundo, de Leandro Gomes de Barros. Ambos, a meu ver tocam num mesmo ponto: a existência, o saber-se “ser”: questionamento sobre a própria humanidade, ainda que em diapasões harmonicamente diferenciados. Dá o que pensar e, de certa forma, os dois poemas ilustram a “chamada” anunciada no início desta minha postagem. Ambos são lindos. Agora é ler e se deleitar... O poeta maranhense comentou, em entrevista dada, que num dia qualquer, caminhando pela rua, foi parado por algumas pessoas que perguntaram se ele era quem ele era. Na entrevista, o poeta se disse perplexo a se questionar sobre quem ele era exatamente. Disse que atravessava um momento difícil, complicado e estressante, no dia em que foi abordado. Isso o fez pensar se ele era o poeta desejado por quem o abordou ou se ele era ele mesmo, um indivíduo cartorial como outro qualquer... Na dualidade da existência de um só sujeito, a voz poética conclama o leitor para a mesma reflexão. Ou estarei enganado? Já no caso do paraibano, também numa entrevista, ele é perguntado sobre se acredita em Deus. Respondendo afirmativamente que sim, cita o poema que aqui trago. Bela maneira de professar a fé e de apresentar uma questão profunda, abissal, cuja resposta leva toda uma vida para ser elaborada e não é encontrada. Espero que quem chegar a ler esta postagem chegue também a gostar dela.

Suassuna.jfif

Gullar.jfif



 

01.04.25

Comparações...

Foureaux

comparação.jfif

No quarto e último capítulo do conto “Civilização”, o narrador criado por Eça de Queiroz diz o seguinte:

“O pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência contra aquele brusco desaparecimento de toda a civilização, caíra pesadamente sobre o poial de uma janela, e dali olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares serranos e o cantar da pegureira sabiam bem, terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através de escadas e becos, onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha. (...)

Voltando acima, com estas consolantes notícias de ceia e cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial da janela, embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e caladamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto já tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do esplendor corporal de Vénus! Jacinto nunca considerara bem aquela estrela — nem assistira a este majestoso e doce adormecer das coisas. Esse enegrecimento de montes e arvoredos, casais claros fundindo-se na sombra, um toque dormente de sino que vinha pelas quebradas, o cochichar das águas entre as relvas baixas — eram para ele como iniciações. Eu estava em frente, no outro poial. E senti-o suspirar como um homem que enfim descansa. Assim nos encontrou nesta contemplação o Zé Brás com o doce aviso de que estava na mesa a ceiazinha. (...).”

Trata-se do início do processo de “mudança” pelo qual vai passar a personagem Jacinto. Fato é que em livro posterior, A cidade e as serras, o mesmo Eça vai retomar esta história sem conseguir findá-la. O que me interessa aqui, entretanto, é a “mudança” que se anuncia no trecho destacado. Lembrei-me dela ao ler outro texto escrito pela juíza substituta da 6ª Vara Criminal de Londrina-PR, Isabele Papafanurakis Ferreira Noronha (Até onde eu sei, ela não defendeu tese de doutoramento, logo, não é “Dra.”!), escreveu um texto que merece ser compartilhado:

“Que sua rejeição por ele não seja maior que sua rejeição pela corrupção. Que sua rejeição por ele não seja maior que sua rejeição de ver o país governado de dentro da prisão pelos comandos de um candidato condenado em duplo grau de jurisdição, assim como ocorre com os líderes das facções criminosas já tão conhecidas. Que a sua rejeição por ele não seja maior que os ensinamentos que você recebeu de seus pais sobre não subtrair aquilo que é dos outros. Que sua rejeição por ele não seja maior que os princípios de educação, moral e cívica que você aprendeu quando criança nos bancos das escolas, na época em que escola ensinava o que, realmente, era papel da escola. Que sua rejeição por ele não seja maior do que sua indignação com a inversão de valores existentes em nossa sociedade atual. Que sua rejeição por ele não seja maior do que seu medo de viver o que já está vivendo a população dos países “amigos deles”, tais como, Venezuela, Bolívia e Cuba. Que sua rejeição por ele não seja maior que sua indignação com cada escândalo de corrupção e desonestidade revelados na lava a jato. Que sua rejeição por ele não seja maior do que seu pânico de viver numa sociedade tão insegura, onde pais de família são mortos diariamente e audiências de custódias são criadas para soltar aqueles que deveriam pagar por seus crimes. Que sua rejeição por ele não o leve ao grave erro de demonizar a polícia e santificar bandido. Que sua rejeição por ele não seja maior que sua defesa pelo fortalecimento da família, como estrutura básica da sociedade. Que sua rejeição por ele não seja maior do que sua repulsa pelo mal que as drogas têm causado em nossas famílias. Que sua rejeição por ele não seja maior que sua esperança de ter um país melhor para viver. Que sua rejeição por ele não tire sua capacidade crítica de apurar tudo que é tendencioso na mídia. Enfim, que sua rejeição por ele não o deixe cego a ponto de não enxergar que, neste momento, o Brasil está numa UTI e seu voto deve ser ÚTIL para salvá-lo. Não brinque com isso, não se iluda com a maquiagem dos discursos bonitos.”

Alguma sinapse provocou meu desejo de partilhar estes dois textos. Outra consequência, talvez, da mesma sinapse foi a vontade de deixar, para quem quer que leia estes textos, o espaço livro para as próprias associações. Opto tibi bonam lectionem!

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