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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

27.02.25

Desabafo

Foureaux


A postagem de hoje é um trecho de diário. Tento manter certa regularidade nele, mas a minha preguiça não deixa. Vou levando aos trancos e barrancos. Não sou melhor que ninguém, nem pior. Sou apenas mais um que tenta demarcar um campo impossível de ser delimitado, por isso mesmo, tão atraente e sedutor. Estudei para ser professor depois de tentar umas tantas outras atividades profissionais. Bati cabeça, como dissera minha mãe certa feita. Pensei que, como professor de universidade – sim era pretensioso e, parece, continuo sendo! – ficaria famoso, publicaria livros, seria convidado para conferências e seminários mundo afora. Acorda, Alice! Um pezinho dentro da academia e... voilá... nada disso aconteceu. Por que não “acontece”. O buraco é bem mais embaixo e não vou desfiar lamentos lamúrias. Vou apenas dizer que o glamour não existe. definitivamente, não! Voltando à vaca fria. Sou um sujeito comum e, de uns anos pra cá, tenho sido objeto de instigante reação alheia: a tristeza. Vira e mexe alguém me diz que fica triste aoler ou escutar coisas que eu digo, sobretudo se o tema é a atualidade, mais precisamente, atualidade brasileira, ainda mais precisamente, a atualidade brasileira no que diz respeito ao que vem acontecendo com a nossa “justiça” e à atividade parlamentar (ainda pode existir?). Pois bem. Começou com um rapaz do Paraná, de Londrina, se não me engano. Conheci-o através de terceiros que indicaram meu nome para revisar sua dissertação de mestrado sobre Caio Fernando Abreu, oque fiz prazerosamente. Tempos idos... Ficamos “amigos”, virtualmente, até que o convidei para receber o título de membro correspondente da ALACIB – explicação sobre a sigla fica para outra ocasião –, uma academia da qual faço parte. Tempo vai, tempo vem, no primeiro governo da “anta” que celebrou a mandioca, ele pediu-me para não mais enviar as ironias que eu enviava sobre a dita cuja para não ter que cortar relações comigo. Ele disso que isso o deixaria muito triste. Depois veio a Ana Maria, que conheci através de um amigo muito querido, o José Carlos Barcellos. Foi em antes do rapaz de Londrina, mas, na mesma medida, pediu-me para não mais fazer as postagens que fazia sob pena de merecer a sua tristeza. Daí veio uma ex-aluna que julgava amiga. Convidara-me duas vezes para ir a Pau dos ferros, uma cidadezinha no meio do sertão potiguar. Fui membro de sua banca de doutoramento. Mereci dois jantares em sua casa. Depois disso tudo, veio “com dois quentes e um fervendo” por conta de uma piada que repliquei no “feicibuc” acerca do desempenho do Moro, em priscas eras de investigação séria sobre a famigerada “Lavajato”. Chamou-me de estúpido e ignorante, por tabela, além de uma série de impropérios “típicos”... Fiquei numa tristeza e dar dó. Como se não bastasse, mais ou menos na mesma altura, um amigo de mais de trinta anos chamou-0me de “o Clodovil da academia: feio, burro e mal-informado”. Decepção foi pouco. Ele não disse isso para mim, escreveu na sua página do mesmo “feicibuc”, sem me avisar. Fiquei sabendo por força do alerta de uma amiga comum que me perguntou o que eu faria. Eu disse: nada. Ele não se dirigiu a mim, escreveu em sua própria página e nem sequer pediu minha manifestação. Decepção foi pouco, muito pouco. Em seguida, no comecinho do frenesi de outra “famigeração”: a covid, estava eu em Porto Alegre, quando recebi mensagem esculachando a minha pessoa em tom dorido, sentido,... triste... Era outra ex-aluna. desta feita, dizendo que eu não tinha compaixão, que eu era privilegiado e que ela estava...triste com minha reação. Custei a entender o que havia acontecido. Resumo da ópera: ela mandou-me um áudio dizendo que, a meu pedido, ainda que ela estivesse... triste, estava me cancelando. Mais uma decepção. Por último, mas não menos importante, uma prima que me acusou de negacionista por não levar a sério as patacoadas do “pessoal do poder” no que aconteceu no igualmente famigerado 8 de janeiro... El também se disse triste com meu posicionamento a respeito. Bom. O que pensar disso? Só posso concluir que “ficar triste”, num sentido um tanto “torto” do adjetivo – e troto porque tendenciosamente oblíquo e ideologizado em seu uso – é uma forma de condenar alguém ao esquecimento. Por outro lado, pode também ser uma forma de eximir-se da utilização de “argumentos”  concretos e consistentes para não ficar à beira do abismo, para usar linguagem figurada (Ainda acredito na plausibilidade deste registro e em sua compreensão como forma discursiva). É isso. Um desabafo. Não teve outra intenção estas mal traçadas linhas. Punto i basta!

15.02.25

Entrevista

Foureaux

Entrevista.jfif

Acabei de ver (extremamente comovido) uma entrevista que não sabia ter sido feita (A gente precisa mesmo saber de tudo?). Uma entrevista. (Alta Definição | Adriana Calcanhotto) Coisa simples. Um interlocutor inteligente, sagaz, sutil, delicado e incisivo. É possível ter todas estas qualidades reunidas num só ato... o de entrevistar? A entrevistada é Adriana Calcanhoto. O entrevistador é Daniel Oliveira, da SIC, um canal televisivo de Portugal. Quando se digita o nome do programa na barra de procura do google (Hoje em dia a gente não procura quase mais nada sem o seu socorro...) aparece o seguinte: “Alta Definição é um programa televisivo da SIC conduzido por Daniel Oliveira em que semanalmente faz uma entrevista, numa abordagem intimista, a um convidado central. As entrevistas são gravadas em alta definição, num local especial escolhido pelo entrevistado.” À parte o fato de ter uma certa birra da cantora por conta de algo que se passou logo depois de 2015... Eu tinha concluído o segundo estágio de pós-doutoramento na Universidade de Coimbra, supervisionado pela filha de uma personalidade única das terras portuguesa – António Arnaut. Era a Ana Paula Arnaut. Foi ela que me deu a notícia de que Adriana Calcanhoto estava em Coimbra por um período de seis meses. Ia uma vez por mês à universidade para desenvolver um, seminário sobre poesia. despesas pagas. Eça, a supervisora. estava indignada pois os vencimentos docentes, àquela altura, beiravam o aviltamento, segundo ela. E lá estava a “cantorazinha” a ganhar num mês o que os locais suavam para ganhar num ano. A levar ao pé da letra a notícia, chegava mesmo a aviltar. Um horror. Daí a birra. No entanto, não dá para esquecer a emoção de ver a cantora em seu début profissional e artístico em Santa Maria da boca do monte, no Rio Grande do Sul, nos idosa de 1992 ou 93, já não me recordo com certeza. Trajando terninho azul, risca de diz, aberto nos ombros e nos joelhos – quando ela se sentou as pernas se desnudaram e quando se movimentava no exercício de violonista ou nos trejeitos afeitos à interpretação das músicas que cantava os ombros tinham a sua vez de fazer o mesmo. Um encantamento sentido e gozado da primeira fila no salão de festas do Itaimbé, então, o melhor e maior hotel da cidade. Eu, carne fresca no mercado, ainda descobria os segredos da cidade – confesso que mesmo depois dos cinco anos lá vividos, a maioria deles me é desconhecida... – e fui ver o show acompanhado de uma mulher extraordinária a quem amei desde o primeiro momento em que a vi: Maria Luíza Furtado Kahl. A mesma emoção se repetiu, quando, ainda em Coimbra, fui ver uma apresentação da Adriana Calcanhoto no teatro da Universidade. Foi o prelúdio do mencionado seminário. Chorei, como chorei durante a entrevista. Será que é mesmo necessário explicar com palavras esse tio de experiência...?

Adriana.jfif

 

13.02.25

Do sopro do minuano

Foureaux

 

Passarinho.jfif

Há um poeta que me causa espécie. Não sei dizer o porquê. Sim esta palavra é acentuada pois tem valor de um substantivo. Basta consultar a gramática normativa da Língua Portuguesa (qualquer que seja o autor) que, entre mortos e feridos, esta verdade científica vai prevalecer. É, de fato, no campo dos estudos linguísticos, uma verdade científica. Por mais que uns e outros queiram desautorizar esta veracidade. Pois bem. O poeta é Mario Quintana. Conheci-o rapidamente em Santa Maria, nos idos de 90 do século passado. Não cheguei a ser apresentado a ele – havia muitos papagaios de pirata em volta, alvoroçados. Um professor do mesmo departamento em que eu trabalhava era amigo dele e dizia ser pessoa muito afável. Depois, um ex-jogador de futebol – pasmem! – o Falcão, acolheu o poeta, então desalojado. Houve até um rumoroso boato dizendo que Mario quintana foi achado no meio da rua, junto com suas malas, pelo jogador e, então, acolhido. Bem... línguas de matildes sempre existiram e dificilmente serão extirpadas da face do planeta. O que me interessa aqui, no entanto é que, no ímpeto de uma ideia que me ocorreu para um livro de poesias, lembrei-me de um “poeminho” do autor gaúcho. Seu título? “Poeminho do contra”:

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!

Para o meu livro, me veio à mente uma paródia:

Seja à mesa ou no balcão

acompanhado ou sozinho

eles tomam chimarrão

eu cafezinho!

Por óbvio, não realizei plenamente a paródia, pois que o sentido do poema “original” não permanece nos versos parodiados, como parece ser o princípio que rege este procedimento poético. No entanto, gostei da brincadeira e já adianto um dos textos que vai compor o futuro livro. O título deste, guardo em “segredo de estado” ... as interpretações são muitas. Há até alguém que afirme que o poeta fazia um protesto de cunho político-partidário... Ainda que imaginação (ainda) não paga imposto e (ainda) não é crime.

Saudades de algumas coisas vivenciadas no período santamariense de minha carreira docente.

Quintana.jfif

 

12.02.25

Andalucía!

Foureaux

Lorca.jfif

Espanha. Um país encantador. Sua capital é vibrante e seu interior, mágico, sedutor, como Sevilha. Sofisticado como Toledo. Ancestral como Segóvia. Imponente como Salamanca. Impressionante como o Valle de los caídos. Inspirador como Ávila. Ainda quero voltar a este país. Nele nasceu um homem que me impressiona, mesmo que eu não saiba colocar ame palavras o real motivo. Apenas me impressiona. Punto i basta. Falo de Federico García Lorca. Eu costumava falar “Lórca”, até o dia em que ouvi dizer que a pronúncia correta é “Lôrca”. Ainda não voltei lá para perguntar a um nativo. Reservo-me o direito de não me dirigir a um scholar local para sabê-lo. A empáfia me incomoda. Não ando atrás de verdades absolutas, por inexistentes, obviamente! Pois... Garcia Lorca (ó ou ô, aqui tanto faz...!) escreveu muito. Dentre suas várias obras está um poema que serviu de mote, se não, de pedra fundamental (matéria mesmo) para um número musical apresentado na sessão do prêmio Goya no corrente ano ((4) DELLAFUENTE- VERDE (GOYA 2025) Homenaje García Lorca - YouTube). Um número de canto e dança. A letra é um poema de Lorca. Identificado pelo google como “Verde que te quiero verde”. A considerar o que diz a edição das obras completas do escritor espanhol, publicada pela Aguilar, de Madri, em 1957, o poema leva por título “Romance somnanbulo”. É terceiro poema da série de 15 que compõem seu livro Romancero gitano (1924-1927). No google, para além do nome que toma o primeiro verso como título, consta que a data de publicação é 1928. Abstenho-me da obrigação de explicar o porquê, dado que o desconheço. as pessoas a quem é dedicado – não faço ideia de quem sejam – são as mesmas – na edição que tenho e no texto da rede que utilizo aqui literalmente iguais, por sorte!). Pensei em fazer uma tradução para colocar aqui, mas a síndrome macunaímica de que sou constante vítima, impossibilitou-me. Segue o poema no original

Romance somnanbulo

Federico García Lorca

Gloria Giner
y
A Fernando de los Ríos

Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura,
ella sueña en su baranda,
verde carne, pelo verde,
con los ojos de fría plata.
Verde que te quiero verde.
Bajo la luna gitana,
las cosas la están mirando
y ella no puede mirarlas.

*

Verde que te quiero verde.
Grandes estrellas de escarcha
vienen con el pez de sombra
que abre el camino del alba.
La higuera frota su viento
con la lija de sus ramas,
y el monte, gato garduño,
eriza sus pitas agrias.
Pero ¿quién vendrá? ¿Y por dónde?…
Ella sigue en su baranda,
verde carne, pelo verde,
soñando en la mar amarga.
—Compadre, quiero cambiar
mi caballo por su casa,
mi montura por su espejo,
mi cuchillo por su manta.
Compadre, vengo sangrando,
desde los puertos de Cabra.
—Si yo pudiera, mocito,
este trato se cerraba.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
—Compadre, quiero morir
decentemente en mi cama.
De acero, si puede ser,
con las sábanas de holanda.
¿No ves la herida que tengo
desde el pecho a la garganta?
—Trescientas rosas morenas
lleva tu pechera blanca.
Tu sangre rezuma y huele
alrededor de tu faja.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
—Dejadme subir al menos
hasta las altas barandas;
—¡Dejadme subir! dejadme
hasta las verdes barandas,
Barandales de la luna
por donde retumba el agua.

*

Ya suben los dos compadres
hacia las altas barandas.
Dejando un rastro de sangre.
Dejando un rastro de lágrimas.
Temblaban los tejados
farolillos de hojalata.
Mil panderos de cristal
herían la madrugada.

*

Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
Los dos compadres subieron.
El largo viento, dejaba
en la boca un raro gusto
de hiel, de menta y de albahaca.
¡Compadre! ¿Dónde está, dime,
dónde está tu niña amarga?
¡Cuántas veces te esperó!
¡Cuántas veces te esperara
cara fresca, negro pelo,
en esta verde baranda!

*

Sobre el rostro del aljibe
se mecía la gitana.
Verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Un carámbano de luna
la sostiene sobre el agua.
La noche se puso íntima
como una pequeña plaza.
Guardias civiles borrachos
en la puerta golpeaban.
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar.
Y el caballo en la montaña.

09.02.25

Destino

Foureaux

Destino.jfif

Ainda era estudante de Letras, quando ouvi falar numa senhora que atendia pelo nome de Agustina Bessa-Luis. Escritora do Norte português, densa, difícil para muitos, opulenta e caudalosa – o número de livros escritos impressiona: 93 (salvo equívoco), entre romances, contos, peças de teatro, crônicas e biografias. Um colosso. Gosto muito do que ela escreve. Muito mesmo. E pensando nisso, certa feita, resolvi ler um de seus primeiros romances A sibila. Na altura, não tinha muitos “recur$o$”. Encontrei o livro num sebo de Belo Horizonte que, não posso afirmar com certeza, não deve existir mais. Infelizmente. Encontrei um exemplar de segunda edição. Fui lendo. Lá pelas tantas percebi que havia alguma coisa esquisita, não conseguia dar andamento na leitura compreensiva da obra. Verifiquei e descobri que faltavam quase 25 paginas do danado do livro (os livros dela são, geralmente, bem “encorpados”...). Custei a me dar conta. Não tive opção. Deixei o volume numa coisa que foi doada para o Remar – organização que cuida de dependentes químicos. Não sei o destino do livro. O que sei é que, anteontem li uma notícia que me deixou estarrecido e me peguei pensando neste episódio comezinho na vida de um estudante de Letras. Que impacto esse tipo de coisa pode causar. É incalculável. A notícia segue abaixo (a fonte: O Orfeu Esquecido: a biblioteca de Jorge de Lima virou lixo - Piparote), sem comentários, porque fiquei deveras estupefato. Não sei o que dizer, sinceramente...

“Soube ontem, com pesar e indignação, que a biblioteca de Jorge de Lima (1893-1953) foi vendida como papel de reciclagem e enviada para um lixão. Vejam: o poeta de Invenção de Orfeu, cujo nome deveria ser sinônimo de transcendência na literatura brasileira, teve seu legado intelectual tratado como descarte. Não apenas livros — mas um pedaço da história literária do país, um mapa de ideias e inspirações que poderiam iluminar gerações, reduzido a lixo.
A grandeza de Jorge de Lima, poeta, médico e alquimista das palavras, não cabe em explicações rápidas. Ele era alguém que transitava entre os extremos da condição humana, entre a aspereza do sertão e a busca pelo divino, entre a modernidade desbravadora e o lirismo atemporal. Sua obra não é apenas um monumento à literatura brasileira; é um mergulho nas profundezas do espírito humano, na busca pela beleza e pela ordem em meio ao caos. E agora, sua biblioteca — que, certamente, guardava volumes repletos de notas marginais, sublinhados, rastros de sua mente em movimento — é tratada como lixo. Livros que Jorge deve ter tocado, lido, ponderado. Obras que o moldaram e que, de algum modo, foram absorvidas e transformadas na matéria-prima de sua poesia. É um destino que não ofende apenas ao escritor, mas a todos que ainda acreditam no papel da memória, na centralidade da cultura e na capacidade dos livros de mudar o mundo.
Não se trata apenas de uma biblioteca destruída. Trata-se de um sintoma mais profundo de um país que não valoriza suas bases culturais, que não entende o significado do que tem. A biblioteca de um poeta não é jamais um amontoado de papéis velhos; é um testemunho de um espírito inquieto, de uma mente que buscava compreender e nomear o mundo. Jogar isso fora é como jogar fora um pedaço da alma nacional.

Por isso, não posso deixar de pensar no significado desse episódio. É como se, enquanto nação, estivéssemos dizendo que o Brasil de Jorge de Lima não nos interessa mais — e, ao dizermos isso, declaramos também que não nos interessamos mais por nós mesmos.
Este não é um problema de uma biblioteca perdida, mas de uma visão de mundo em colapso. Vivemos numa época que idolatra o efêmero e despreza o que é duradouro. Uma época que consome imagens rápidas e descarta palavras eternas. A biblioteca de Jorge de Lima foi tratada como lixo porque não aprendemos a olhar para trás.
O destino da biblioteca dele não é apenas uma tragédia isolada. É um lembrete doloroso de que, enquanto projeto de civilização, falhamos. Falhamos em preservar, em honrar, em cuidar do que realmente importa. E quando o Brasil descarta Jorge de Lima, descarta a mim, a você; descarta a si mesmo.”

01.02.25

Mais uma...

Foureaux

Eco.jfif


No capítulo das releituras que causam enorme prazer, mais uma: O cemitério de Praga, Umberto Eco. O semioticista sabia escrever um romance. Romance mesmo, dos bons. Depois de lê-lo pela primeira vez, estive em Praga. Procurei encontrar o “clima” de algumas passagens do romance naquela cidade misteriosamente encantadora. Devo confessar que, desta vez, uma estranheza me ocorreu: não me dei conta de algumas “personagens”, como descrito na contracapa do volume que compulsei (2ª edição, Record, 2011). A satanista e as missas negras por exemplo. Pode ter sido falta de atenção minha, pode ter sido leitura malfeita, pode ter sido efeito de “problemas” de tradução. Vai saber. Isso não importa, na verdade. O romance é delirantemente delicioso. Para além disso, é de uma graça, às vezes, estonteante. Há passagens hilárias. O humor refinadíssimo do autor e sua verve sarcástica marcam presença inolvidável. Prova de sua erudição e amplo conhecimento de causa. Uma delícia de ler. Destaco duas passagens, das muitas que me deixaram estonteado de tanto prazer na leitura. Não sei se o efeito vai ser o esmo em que está lendo estas linhas, mas vale o esforço.

A primeira: “Entre os intelectuais parisienses, há quem admita, antes de exprimir a própria repugnância “ante os judeus, que alguns dos seus melhores amigos o são. Hipocrisia. Não tenho amigos judeus (Deus me livre); na minha vida sempre evitei essa gente. Talvez os tenha evitado por instinto, porque o judeu (veja só, como o alemão) sente-se pelo bodum (disse-o inclusive Victor Hugo, fetor judaica), que os ajuda a se reconhecerem, por esses e outros sinais, como aconte

ce aos pederastas. Meu avô me recordava que o cheiro del do uso desmedido de alho e cebola e talvez das carnes de carneiro e de ganso, sobrecarregadas por açúcares viscosos que as tornam atrabiliosas. Mas devem ser também a raça, o sangue infecto, os dorsos derreados. São todos comunistas, vejam-se Marx e Lassalle, ao menos nisso meus jesuítas tinham razão.

Sempre evitei os judeus também porque estou atento aos sobrenomes. Os judeus austríacos, quando enriqueciam, compravam sobrenomes

graciosos, de flor, de pedra preciosa ou de metal nobre, daí Silbermann ou Goldstein. Os mais pobres adquiriam sobrenomes como Grünspan (azinhavre). Na França, como na ltália mascararam-se adotando nomes de cidades ou de lugares, como Ravenna, Modena, Picard, Flamand, e por vezes se inspiraram no calendário revolucionário (Froment, Avoine, Laurier) – justamente, visto que seus pais foram os artífices ocultos do regicídio. Con­vém, porém, prestar atenção também aos nomes próprios que vezes mascaram nomes judeus: Maurice vem de Moisés, Isidore de Isaac, Edouard de Aarão, Jacques de Jacó e Alphonse de Adão...

Sigmund é um nome judeu? Por instinto, eu tinha decidido não dar confiança àquele medicozinho, mas um dia, ao pegar o saleiro, Froïde o derrubou. Entre vizinhos de mesa devem-se respeitar certas normas de cortesia e eu lhe estendi o meu, observando que, em cercos países, derramar o sal era de mau agouro, e ele, rindo, respondeu que não era supersticioso. Desde aquele dia, começamos a trocar umas palavras. Ele se desculpava pelo seu francês, que con­ siderava muito arrastado, mas se fazia entender muito bem. São nômades por vício, precisam se adaptar a todas as línguas. Gentilmente, eu disse: ‘O senhor só precisa habituar mais o ouvido.’ E ele me sorriu com gratidão. Escorregadia.

Froïde era mentiroso até enquanto judeu. Eu sempre ouvira dizer que os da sua raça devem consumir apenas alimentos especiais, cozidos apropriadamente, e por isso se mantêm sempre nos guetos, ao passo que Froïde comia em grandes bocados tudo o que lhe sugeriam no Magny e não desdenhava um copo de cerveja às refeições. (p. 48)”

A segunda: “– Senhores, a afirmação de que Cristo era judeu é uma lenda divulgada precisamente pelos judeus, como eram São Paulo e os quatro evangelistas. Na realidade, Jesus era de raça céltica, como nós, franceses, que só muito tarde fomos conquistados pelos latinos. E, antes de serem emasculados pelos latinos, os celtas eram um povo conquistador; já ouviram falar sobre os gálatas, que chegaram até a Grécia? A Galileia se chama assim por causa dos gauleses, que a colonizaram. Por outro lado, o mito de uma virgem que teria parido um filho é mito céltico e druídico. Jesus, basta olhar todos os retratos que temos dele, era louro e de olhos azuis. E falava contra os usos, as superstições, os vícios dos judeus e, ao contrário de tudo o que os judeus esperavam do Messias, dizia que seu reino não era deste mundo. E, se os judeus eram monoteístas, Cristo lança a ideia da Trindade, inspirando-se no politeísmo céltico. Foi por isso que mataram. Judeu era Caifás que o condenou, judeu era Judas que o traiu, judeu era Pedro que o renegou...” (p. 379)

Há receitas, aqui e ali, durante a narrativa. Tudo temperado com afinada ironia, tal como a seguinte observação: “Os tolos precisam ter sob as cobertas uma mulher, ou um rapazinho, para não se sentirem sós. Não sabem que a água na boca é melhor do que uma ereção. (p. 26). Mais “saboroso”, quase impossível! Atenção: não me venham com o lero-lero de que Umberto Eco era antissemita. Por favor! Tenham a decência de ler suas palavras no diapasão da ironia ficcional de que se serve para escrever o romance. Que romance!

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