Palavras e imagens
Reli Dom Quixote. E ri muito. O livro é mesmo engraçado. À parte o fato da tradução do aquilino Ribeiro ter expressões um tanto esdrúxulas, gostei. Foi uma leitura mais deleitosa. Já o havia lido outras duas vezes, em traduções diferentes. Não fosse o cartapácio que é, me atreveria a traduzi-lo, tentando empregar linguagem mais leve, menos literal e, tanto quanto possível, longe de purismos e idiossincrasias peculiares. Tarefa quase impossível, mas fico com a releitura, por enquanto. Paralelamente, li um livro de que já havia ouvido falar e, até já tinha lido alguma coisa acerca dele mesmo: Terra dos homens (Gallimard, 1939), do Antoine Saint-Exupéry. Na edição que li (Clube de Literatura Clássica), quem faz a apresentação (Rodrigo Bravo) diz o seguinte: “Terra dos homens é um daqueles livros cujo gênero é de difícil definição. Não se trata de um romance propriamente dito com personagens bem delineados e história provida de começo, meio e fim. Também não se trata puramente de um ensaio filosófico aos moldes de Sêneca, Kant ou Heidegger. Situa-se no limiar entre ambos, de modo que a crítica literária cunhou o termo relato lírico para tentar dar conta de sua complexidade. A obra traz uma reflexão sobre as experiências do autor como pioneiro da aviação nos anos 20 e 20 (...).” Vou ficar só com esse pedaço de citação. Minha chatice não aguenta seguir em frente. Ora, quer dizer que para ser um romance tout court é necessário ter “personagens bem delineados e história provida de começo, meio e fim”? Em primeiro lugar, para quê reduzir a leitura de um texto à busca de “definição” de seu gênero. O prazer da leitura (vide Rubem Alves) se perde completamente no cipoal que esta busca cria... Por outro lado, quem garante que a presença dos elementos citados pelo apresentador é suficientes para a “definição” de um “gênero”? Para além disso, o cacoete “acadêmico” diz “presente” neste minúsculo trecho quando se depara com o verbo “provido”, adequadamente flexionado pelo jargão rançoso e sebento de uma crítica que visa o mercado e a instituição, em lugar de se dedicar a seduzir o(s) leitor(es). Como eu disse, minha chatice não aguentou ir adiante com a citação. E mais, adoro aspas: elas dizem muito mais do que muitas palavras... adiante. Umdos trechos interessantes do livro – para além de todo o conjunto de observações, circunlóquios, solilóquios e pensamentos que deslizam elas páginas como aragem em tarde de verão – pode ser (até) utilizado para sustentar o argumento de que o texto é contemporâneo, mas deixo isso para os que lerem o livro do escritor francês. cada um sabe de si. O trecho a que me refiro é o seguinte:
“Podemos classificar os homens em homens de direita e homens de esquerda, em corcundas e não corcundas, em fascistas e democratas, e essas distinções são inatacáveis. Mas a verdade, como você sabe, é aquilo que simplifica o mundo, e não o que cria o caos. A verdade é a linguagem que alcança o universal. Newton não “descobriu” uma lei por muito tempo dissimulada, como se fosse a solução de um enigma; Newton efetuou uma operação criadora. Fundou uma linguagem humana que pôde exprimir tanto a queda da maçã no chão quanto a ascensão do sol. A verdade não é o que se demonstra, é o que simplifica.
Para que serve discutir ideologias? Se todas podem ser demonstradas, todas também se opõem, e discussões como essas levam a desesperar da salvação do homem. Ao passo que o homem, em todos os lugares, ao nosso redor, revela as mesmas necessidades.
Queremos ser libertados. Quem golpeia o chão com uma picareta quer saber o sentido desse golpe de picareta. E o golpe de picareta do condenado, que humilha o condenado, não é o golpe de picareta do minerador, que engrandece o minerador. A prisão não é onde os golpes de picareta são dados. Não é um horror material. A paixão é onde os golpes de picareta não têm sentido, não unem quem os dá com a comunidade dos homens.
E todos nós queremos fugir da prisão.”
Confesso que o trecho não é dos meus preferidos. No entanto, fiz questão de escolhê-lo para provocar quem, por acaso, me ler. Não subscrevo a falácia de que tudo que tem quer politizado, no sentido de marcação ideologicamente tendenciosa do discurso. Mas é só uma provocação.
Mudando de direção, vi um filme delicadíssimo. O que ele tem de delicado tem também de forte, contundente, avassalador por dois motivos: a presença de dois atores de impecável talento e irrecorrível valor: Glenda Jackson e Michael Caine. Ambos desempenham papéis condizentes com sua idade real. O segundo motivo é o tratamento dado ao plot do filme: o desejo de superação de traumas, muitas vezes, recalcados por vontade própria, em nome de um equilíbrio que se perde, por desnecessário: mas só se percebe isso quando o tempo passa. A história de um homem idoso que volta ao ponto de viragem de sua vida sob o pretexto de participar das comemorações dos 70 anos do “Dia D”. De fato, esta é apenas a válvula de escape para o verdadeiro drama que se desenvolve em atuações simplesmente irretocáveis – como não podia deixar de ser. Estou falando de A grande fuga (The great escaper, no original), de 2023, dirigido por Oliver Parker. Um filmaço. Como eu disse, de uma delicadeza contundente. Vi na Netflix e recomendo – ainda que eu saiba, de antemão que “recomendações” são sempre falhar, discutíveis e, quase sempre, inúteis. Mas... vá lá...!