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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

Antepenúltimo

Foureaux, 30.12.22

Há um certo mistério quando alguém escreve um livro e dá a ele o nome de biografia. Parece que cada palavra sobre o biografado se recobre de certa magia, transforma a vida deste num emaranhado de rocambolescas aventuras, todas ela inalcançáveis para o sujeito comum. Isto é apenas aparente. No causo de alguém escrever a própria biografia, esta “magia” se faz sentir com mais impacto. Felizmente, para a salvação de leitores contumazes, isto só acontece quando o autor da referida obra já é, digamos, consagrado. Isto é um alívio, pois entre a fantasia e a mentira, a fronteira é muito tênue, quase esgarçada. Confesso que não sei por que escrevi isto. No entanto, tenho a certeza de que a ideia me veio depois de terminar a leitura de dois livros de um mesmo autor português. Esta leitura segue a de outro escritor brasileiro, a mim muito caro que, de relance, parece-me aproximar-se ficcionalmente do lusitano. Explico-me. Os livros mais recentemente lidos são Apoteose dos mártires e Embora eu seja um velho errante, do Mario Claudio, português. O brasileiro é Graciliano Ramos e a obra, o primeiro volume de Memórias do Cárcere (em releitura). No caso do escritor português, devo dizer que seu último livro, Apoteose dos mártires não me causou tanta impressão quanto a série de outros que dele tenho lido. Confesso que a descoberta deste escritor é relativamente recente e não fiz uma leitura “cronológica” de sua obra para ensejar avaliação mais consistente. De qualquer maneira, o impacto da leitura deste romance foi menos intenso. Outros livros de Mario Claudio me fizeram ficar mesmo arrepiado com coceira no cérebro, admirado com o talento e a sutileza da escrita do autor. Claro está que não estou negando estes aspectos ao livro a que me referi. Muito longe disso. A escrita de Mario Claudio continua a exercer em mim o mesmo fascínio, mas não posso fugir da responsabilidade de dizer que, vamos lá, gostei menos deste último livro por ele escrito. Como diz um amigo querido – ex-aluno e colega, quase titular, agora – o escritor prima por uma de suas marcas: faz referências a uma personagem em alguns momentos de sua narrativa. E, de repente, dedica a esta personagem um capítulo inteiro. Tal capítulo se faz, por via de consequência, imprescindível para a “compreensão” do enredo. Quanto a este aspecto tenho uma observação a fazer. Creio que já a fiz alhures, em outro momento. Trata-se da constatação de que em boa parte de seus romances. Mario Claudio não se preocupa em desenvolver um “enredo” no sentido tradicional do termo. Explico-me. Percebo nos romances do autor que não há, de fato, uma sequência de episódios que se possa chamar de enredo a ensejar uma espécie de “saga”. De fato, como já disse antes, nos romances de Mario Claudio não “acontece” nada. Sua narrativa se compões de reentrâncias que se locupletam e uma ficcionalização a partir das lacunas que se deixam pelo caminho, sobretudo naqueles romances que tratam de “biografias” de pessoas destacadas da cultura portuguesa: GuilherminaAmadeoThiago Veiga, por exemplo. Nestes, o que a biografia não conta – por opção ficcional do autor do relato romanesco – vem apresentado numa sequência complementar de ilações, interferências e até invenções que acabam por dar forma a um relato coeso e impactante. Olhando para o outro lado do Atlântico, no caso de Graciliano Ramos, como referido de início, não se percebe o mesmo “fenômeno” – de fato, não há de “fenomenal” aqui. Diferentemente, o escritor alagoano não deixa escapar um fiapo que seja da dura realidade que vai apresentando num relato entrecortado de observações argutas sobre o comportamento humano o que acaba por desvelar um discurso ético acerca das idiossincrasias do humano que se debate entre intuições, constatações, imaginações e referências. O tom autobiográfico é mascarado por um discurso que beira o fantasioso quando, de fato, não escapa um milímetro sequer da mais acurada observação de um “objeto” que é mais que concreto porque corriqueiro: a vida humana em uma de suas facetas mais chocantes e dolorosas. Entre os dois escritores, em alguma medida, pode-se identificar um traço comum: sua sede por compreender o fenômeno da humanidade em suas mais diversificadas manifestações; seja pelo entendimento das ações e reações em enfrentamento direto e constante com a realidade, no caso de Graciliano Ramos; seja na busca de preencher lacunas “biográficas” que a realidade, ela mesma, não é capaz de preencher em sua fatualidade consequente. Num e noutro caso, fica a certeza de que se trata de dois exemplos acabados e suficientes – em si mesmos – de literatura densa e consequente, preocupada com a matéria com que trabalha em busca de uma expressão que ultrapassa estereótipos de modelos explicativos que não se sustentam. Evoé Literatura!

Dário

Foureaux, 17.12.22

Tenho tentado manter um diário. A duras penas, por conta de minha abissal personalidade macunaímica. Neste diário, hoje, registro um fato que me toca, ainda que pouco. A morte de uma escritora. Ficou uma saudade.

Nélida Piñon faleceu agora à tarde, em Lisboa. Quisera eu estar vivendo lá, onde ela vivia, ultimamente. Conheci-a em Santa Maria, ainda nos anos 90, já não sei se 3 ou 4, mas 90... Chatices... Fui apanhá-la no aeroporto da cidade, ao lado da base aérea num final de tarde chato, entediante, em que eu estava pelas tampas num mal humor inexplicável. Hoje, eu penso que já era sintoma de uma crise depressiva que vim a viver por alguns meses depois. Pois. Fui designado para ir apanhá-la no aeroporto. Lá fui. Queria fazer qualquer coisa menos estar ali, esperando por uma senhora desconhecida – então presidente da Academia Brasileira de Letras – que chegava para uma conferência no dia seguinte. Teria que levá-la ao hotel e, quem sabe – como acabou por acontecer – ao restaurante. No dia seguinte, deveria pegá-la no hotel, ainda uma vez, levá-la ao CAL, acompanhá-la ao gabinete da Direção e apresentá-la no “Quinta versão”, auditório do Centro. Fui. Esperei. Ela chegou. Os olhinhos de fuinha, cabelo liso, elegante e simplesmente vestida. Um sorriso rasgado na face. Levei-a ao Itaimbé. Na época, o melhor hotel da cidade. Conversamos animadamente. Até hoje eu não consigo explicar de onde me veio a energia para ficar tão animado com essa conversa entre Camobi e o centro da cidade. Depois, quando chegamos ao Augusto – então, o melhor restaurante da cidade, o mais tradicional, o mais conhecido, hoje, infelizmente, inexistente – passamos uma noite incrível. Tomamos três garrafas de um Pinot Noir, da Aurora. De novo, à época, esta vinícola produzia vinhos mais que excelentes e tinha lançado o Pinot Noir naquele ano. O papo foi mais que animado, divertido. três horas da manhã a deixei à porta do hotel. No dia seguinte, peguei-a, ainda uma vez. Fomos para o “Quinta versão”. Ela fez sua conferência. Foi um sucesso. depois disso, jamais a vi pessoalmente outra vez. Tentei ler dela um de seus primeiros romances: Tebas do meu coração. Não cheguei a terminá-lo. Cheguei a manusear A república dos sonhos, mas não o li. agora, com sua morte, reacendeu-se o desejo de ler sua obra. Será que minha preguiça vai deixar? De qualquer maneira, uma pena, uma tristeza. Mais uma vez que se cala. Uma voz clara, divertida, articulada, densa, ampla. Uma pena. 

Brincadeira

Foureaux, 04.12.22

Maria do Rosário Pedreira é uma portuguesa, editora e poeta que escreveu um livro chamado O Canto do Vento nos Ciprestes. Sem querer, por acaso mesmo, encontrei um poema dela, que faz parte deste livro, declamado por um rapaz. Um vídeo disponibilizado por alguém e que me chegou assim, de repente. Procurei o dito vídeo no Youtube. Não o encontrei, mas deixei reverbar a beleza dos versos da moça. Fiquei tocado. Imediatamente pensei em fazer um exercício poético, uma brincadeira: escrevi versos a partir dos versos de seu poema. O resultado (abaixo, depois do poema original) é o que segue. Ah... ia me esquecendo. Como não conheço o livro da portuguesa, não sei da disposição original dos versos. Assim, a disposição que aqui se apresenta corre por minha conta e risco. 

 

Se partires, não me abraces

 

– a falésia que se encosta uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão das marés 

e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz senão enumerar as próprias feridas

(como a falésia conta as embarcações perdidas nos gritos do mar); 

e o rosto espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.


Se me abraçares, não partas.

 

Ah... faz isso... 

 

deixa de me abraçar e não reclama depois.

Como um muro, o lamento vai escorrer, perene, sem deixar de ser o que sempre foi.

As marés temperam as idas e vindas o desejo, esse que o atormenta tanto.

A cada abraço, sinto que você vibra mais e as ondas rebatem a falésia dos corpos.

Ouço, então, o assovio das nereidas no atol de sonhos.

Veja: medo e prazer estão sempre juntos. Justa medida.

Respiramos o mesmo ar e o vento que sopra já não se distingue

e faz firulas no tempo, por isso não quero mais seu abraço.

O miasma que mancha minha pele, como roupa, envolve a sua vida.

A solidão que me sustenta e ronda aponta o que restou de azul no rosário de dores

(como o muro que reescreve os gemidos como naus bêbadas de saudade);

e o reflexo do luar espelha tristeza como pirilampos de mágoa.

 

Se você for embora, deixa seu abraço.