Antepenúltimo
Há um certo mistério quando alguém escreve um livro e dá a ele o nome de biografia. Parece que cada palavra sobre o biografado se recobre de certa magia, transforma a vida deste num emaranhado de rocambolescas aventuras, todas ela inalcançáveis para o sujeito comum. Isto é apenas aparente. No causo de alguém escrever a própria biografia, esta “magia” se faz sentir com mais impacto. Felizmente, para a salvação de leitores contumazes, isto só acontece quando o autor da referida obra já é, digamos, consagrado. Isto é um alívio, pois entre a fantasia e a mentira, a fronteira é muito tênue, quase esgarçada. Confesso que não sei por que escrevi isto. No entanto, tenho a certeza de que a ideia me veio depois de terminar a leitura de dois livros de um mesmo autor português. Esta leitura segue a de outro escritor brasileiro, a mim muito caro que, de relance, parece-me aproximar-se ficcionalmente do lusitano. Explico-me. Os livros mais recentemente lidos são Apoteose dos mártires e Embora eu seja um velho errante, do Mario Claudio, português. O brasileiro é Graciliano Ramos e a obra, o primeiro volume de Memórias do Cárcere (em releitura). No caso do escritor português, devo dizer que seu último livro, Apoteose dos mártires não me causou tanta impressão quanto a série de outros que dele tenho lido. Confesso que a descoberta deste escritor é relativamente recente e não fiz uma leitura “cronológica” de sua obra para ensejar avaliação mais consistente. De qualquer maneira, o impacto da leitura deste romance foi menos intenso. Outros livros de Mario Claudio me fizeram ficar mesmo arrepiado com coceira no cérebro, admirado com o talento e a sutileza da escrita do autor. Claro está que não estou negando estes aspectos ao livro a que me referi. Muito longe disso. A escrita de Mario Claudio continua a exercer em mim o mesmo fascínio, mas não posso fugir da responsabilidade de dizer que, vamos lá, gostei menos deste último livro por ele escrito. Como diz um amigo querido – ex-aluno e colega, quase titular, agora – o escritor prima por uma de suas marcas: faz referências a uma personagem em alguns momentos de sua narrativa. E, de repente, dedica a esta personagem um capítulo inteiro. Tal capítulo se faz, por via de consequência, imprescindível para a “compreensão” do enredo. Quanto a este aspecto tenho uma observação a fazer. Creio que já a fiz alhures, em outro momento. Trata-se da constatação de que em boa parte de seus romances. Mario Claudio não se preocupa em desenvolver um “enredo” no sentido tradicional do termo. Explico-me. Percebo nos romances do autor que não há, de fato, uma sequência de episódios que se possa chamar de enredo a ensejar uma espécie de “saga”. De fato, como já disse antes, nos romances de Mario Claudio não “acontece” nada. Sua narrativa se compões de reentrâncias que se locupletam e uma ficcionalização a partir das lacunas que se deixam pelo caminho, sobretudo naqueles romances que tratam de “biografias” de pessoas destacadas da cultura portuguesa: Guilhermina, Amadeo, Thiago Veiga, por exemplo. Nestes, o que a biografia não conta – por opção ficcional do autor do relato romanesco – vem apresentado numa sequência complementar de ilações, interferências e até invenções que acabam por dar forma a um relato coeso e impactante. Olhando para o outro lado do Atlântico, no caso de Graciliano Ramos, como referido de início, não se percebe o mesmo “fenômeno” – de fato, não há de “fenomenal” aqui. Diferentemente, o escritor alagoano não deixa escapar um fiapo que seja da dura realidade que vai apresentando num relato entrecortado de observações argutas sobre o comportamento humano o que acaba por desvelar um discurso ético acerca das idiossincrasias do humano que se debate entre intuições, constatações, imaginações e referências. O tom autobiográfico é mascarado por um discurso que beira o fantasioso quando, de fato, não escapa um milímetro sequer da mais acurada observação de um “objeto” que é mais que concreto porque corriqueiro: a vida humana em uma de suas facetas mais chocantes e dolorosas. Entre os dois escritores, em alguma medida, pode-se identificar um traço comum: sua sede por compreender o fenômeno da humanidade em suas mais diversificadas manifestações; seja pelo entendimento das ações e reações em enfrentamento direto e constante com a realidade, no caso de Graciliano Ramos; seja na busca de preencher lacunas “biográficas” que a realidade, ela mesma, não é capaz de preencher em sua fatualidade consequente. Num e noutro caso, fica a certeza de que se trata de dois exemplos acabados e suficientes – em si mesmos – de literatura densa e consequente, preocupada com a matéria com que trabalha em busca de uma expressão que ultrapassa estereótipos de modelos explicativos que não se sustentam. Evoé Literatura!