Uma carta. Ainda não sei o que vou fazer com ela. Quem escreve é Otacílio Piffio, o escritor identificado por esse pseudônimo. Não sei se darei a ele um nome. Por enquanto mantenho o nome da personagem do romance que ele escreve igual ao pseudônimo que usou para escrevê-lo. Acredito que pode dar um certo ar de suspense. Não pretendo que o romance seja policial. Não quero mistério pelo mistério. Isso, a garotada das oficinas de escrita criativa é capaz de fazer. O “mercado” gosta e consome. Isso é vulgar. Está se tornando cada vez mais vulgar. Gosto de ler, mas não gosto de cultivar o gênero. Sou chato, sim e daí? Por isso não sei o que fazer com essa carta. Não sei se revelarei o nome verdadeiro do autor do romance. E tenho que pensar no que já escrevei, no corpo encontrado no quarto de hotel, na relação entre a camareira e o rapaz da limpeza. Tem o detetive. A Zuleica e agora esse destinatário da carta de Otacílio Piffio. Tanta coisa! A preguiça só faz aumentar. Por enquanto, fico com a carta como aqui está!
“Recebi sua carta ontem. Uma coisa e outra e, pronto, não respondi ontem mesmo. respondo hoje. Sei que você, às vezes, prefere as mensagens de texto, ou mesmo, as de áudio. Confesso que é muito mais prático. Não há dúvida. Mas e o charme de escrever pensando no destinatário. Marcar o papel lembrando de passagens comuns. Imaginar a reação de quem vai receber e ler a carta. Tenho a ilusão de que sempre vai ser uma surpresa. Conheço você muito bem. Faz quase quarenta anos que nos conhecemos e ainda tenho a mesma ilusão. Sei que você sente o mesmo, ou algo muito parecido. Por aqui tudo tranquilo. Aas chatices do concurso continuam. Recebi notícia de que o romance foi classificado para a terceira etapa. O problema é o júri final., aquele que lê apenas Sempre me entusiasmei com a vida dos santos. Quando fui beneditino cheguei a ler algumas obras a respeito. Dentre eles, há um que sempre me chamou a atenção, por conta de sua relação visceral com a ordem beneditina, que sempre me fascinou. O nome dele é Bernardo de Claraval. Em francês, seu nome fica bem mais chique: Bernard de Clairvaux. Mas não se trata de “chiquezas” aqui… Bernardo foi um abade francês canonizado em 1174 e em 1830 Pio VIII o proclamaou Doutor da Igreja. Foi o principal responsável por reformar a Ordem de Cister – daí minha fascinação com ele e com a ordem dos beneditinos. Este santo participou do Concílio de Troyes, que delineou a regra monástica que guiaria os cavaleiros templários e que rapidamente tornou-se o ideal de nobreza utilizado no mundo cristão. Foi eficiente na reconciliação da Igreja durante o chamado “cisma papal de 1130”. Foi Bernardo quem ajudou a organizar o Segundo Concílio de Latrão – em 1141, Inocêncio convocou o Concílio de Sens para tratar da denúncia de Bernardo contra Pedro Abelardo. Com bastante experiência em curar cismas na Igreja, Bernardo foi em seguida recrutado para ajudar no combate às heresias que grassavam no sul da França. No Oriente Médio, depois da derrota cristã no cerco de Edessa, o papa encarregou Bernardo de pregar a Segunda Cruzada, cujo fracasso seria depois considerado parcialmente culpa sua. Morreu aos 63 anos, depois de passar quarenta anos enclausurado. Foi o primeiro cisterciense no calendário de santos, tendo sido canonizado por Alexandre III em 18 de janeiro de 1174. Ao que parece, São Bernardo foi um homem de muitas iniciativas e poucos sucessos. Parece ter sido um homem enérgico que acabou, vamos dizer assim, metendo os pés pelas mãos, ainda que tenha se tornado santo. mas isso é outra história. Por enquanto, basta guardar estas informações. Mudando de assunto, uma ave que me fascina é a coruja. Simbolicamente, esta ave representa a reflexão, o conhecimento racional e intuitivo. Na mitologia grega, Athena, a deusa da sabedoria, tinha a coruja como símbolo. A associação desta ave a Athena, faz com que a gente veja a deusa como um ícone de profecia e sabedoria. Além disso, os gregos acreditavam que por ser um pássaro noturno, era um símbolo de busca pelo conhecimento, já que esse era o horário considerado propício para o pensamento filosófico. Mas o que é que pode haver de comum entre estas duas considerações? Respondo logo: a releitura de um romance que sempre me impressionou: São Bernardo. De novo, quando fui beneditino, um colega e ordem me perguntou o que é que eu pensava de Graciliano Ramos. Respondi que era um escritor chato, seco e sem graça. O colega riu muito. Conversamos um tanto sobre Literatura Brasileira e ele arrematou a conversa dizendo que eu lesse Caetés, Angústia e Memórias do cárcere. Exatamente nesta ordem. Fi-lo. Depois de fazê-lo, voltamos a conversar e minha opinião mudou radicalmente. Hoje, pela quarta ou quinta vez, releio São Bernardo. Um romance impressionante. Primeiro porque pensei em associar a figura da personagem principal, Paulo Honório, à do santo mesmo. Leio alegoricamente esta associação, sobretudo, no que o santo tem de enérgico, cheio de inciativa e desastrado ao final das contas. Segundo, porque há no romance o pio da coruja que aparece, se não me engano, três dezes. Duas delas chegam a assustar o protagonista do romance. Isso não pode ser gratuito.
Mudando de saco pra mala, não quero a mirada da mediocridade a obscurecer os momentos de lucidez que, porventura, venham a me inundar a alma. Não mais ter que aguentar as caras tortas de quem acredita que um poema vale menos, bem menos, que tudo que alguém pode dizer sobre ele. Mesmo quem jamais “leu” o poema como seria de esperar. A dispensa do poema não é garantia de melhor abordagem teórica ou crítica ou analítica. Os detalhes de um poema contam. A discussão começa por conta da dúvida sobre o “excessivo” uso de vírgulas ou de pronomes relativos na composição de seu poema. Foi “decretado”, antes de tudo começar, que a biografia do poeta é dispensável, por foça de sua influência sobre o entendimento da “mensagem” do poema. Comecei a rir. Daí, um salto para a circunscrição do poeta e de seu poema na “série histórica” da literatura nacional à qual pertence, sem esquecer, é claro, o problema dos gêneros, subgêneros tipos textuais e quejandos que a poética – a de Dilthey ou a de Hegel, bem entendido –, exigem como conditio sine qua non. Eles não sabiam o significado da expressão, assim como desconheciam o bom uso da mesóclise. Patético.
O romance foi selecionado entre outros 3725. Destes, 2400 não passaram pela primeira triagem. Trezentos professores universitários de diversas partes do país leram 8 romances cada. Depois, o júri preliminar selecionou três. O júri final, composto por três membros por sua vez, leu apenas três romances selecionados pelo outro. Uma judiaria. Muita coisa boa deve ter passado batido. Parece um massacre. Imagina. Não sei se sinto orgulho disso. Não sei dizer. Fico imaginando a trabalheira e a quantidade de interesses e picuinhas que interferiram em todo o processo. De qualquer maneira, gostando ou não, pode-se dizer que é uma vitória.
Tédio. Isso é o que eu sinto agora. Tédio. Você não responde mais com a mesma frequência. Eu também ando atrasando as minhas cartas. Você prefere os meios mais modernos. Eu quero tudo o que eu não tenho. Quero ser lido. Quero ser valorizado. Quero ter meus livros vendidos sem ter que me preocupar se a editora está ou não depositando os direitos autorais. Tudo impossível. Esta cidade está impossível. Ainda assim eu escrevo, mesmo sem saber para quê, por quê, para quem. Escrevo e continuo sentindo o mesmo tédio. Vamos ver se você não demora tanto a responder desta vez!”