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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

Poesia

Foureaux, 30.09.22

Vi ontem, por acaso, um vídeo com uma senhora declamando um poema. Era a própria poeta, Ana Luísa Amaral, portuguesa. Encantou-me a maneira como disse o próprio poema. Encantou-me o poema. A Literatura, uma vez mais, atenuando, em minh’alma as agruras do tédio, esse que não me abandona, jamais. Tomara que gostem!

SONETO CIENTÍFICO A FINGIR

 

Dar o mote ao amor. Glosar o tema

tantas vezes que assuste o pensamento.

Se for antigo, seja. Mas é belo

e como a arte: nem útil nem moral.

 

Que me interessa que seja por soneto

em vez de verso ou linha devastada?

O soneto é antigo? Pois que seja:

também o mundo é e ainda existe.

 

Só não vejo vantagens pela rima.

Dir-me-ão que é limite: deixa ser.

Se me dobro demais por ser mulher

(esta rimou, mas foi só por acaso)

 

Se me dobro demais, dizia eu,

não consigo falar-me como devo,

ou seja, na mentira que é o verso,

ou seja, na mentira do que mostro.

 

E se é soneto coxo, não faz mal.

E se não tem tercetos, paciência:

dar o mote ao amor, glosar o tema,

e depois desviar. Isso é ciência!

 

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35

(Folha de Poesia: Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)

Rascunho

Foureaux, 28.09.22

Assim, simples. Não seria uma história. Não de fato. Poderia ser, mas não sei. Não estou seguro se faria sentido se fosse mesmo uma história. O homem andaria muito, observando o sol, o vento, o céu. Sentiria o vento e a textura da terra em que pisa. Tudo com muita calma e prazer. Sim, prazer. Não seria possível imaginar esse homem sem prazer. Em todos os sentidos. Espero que isso venha a ficar claro. Pois então. O homem anda, por dias a fio, encontra lugares de que gosta. O ângulo da luminosidade. Os acidentes geográficos que pode identificar dali. Se for do alto de uma falésia, o mar seria outro ponto de interesse. Não importa. O que vale mesmo é saber que antes de mais nada ele anda, muto. E para sem cálculo, sem previsão. Para quando sente que deve parar e quando sente que o lugar em que está é suficiente para fazer o que ele tem que fazer. Sim. Ele faz porque tem que fazer. Claro que ele gosta, mas tem que fazer. O senso de obrigação é atávico e ele não sabe explicar por quê. As pessoas perguntam coisas a respeito. Perguntas soltas, às vezes desarticuladas. Ele sabe que todos querem saber o que ele também quer, e não sabe. Ainda. Acredita que com o resultado do que faz seja possível encontrar uma resposta. Ou não. Será que importa mesmo encontrar a resposta? Ele se pergunta, sempre, mas continua. Então... ele caminha. Senta-se e começa os eu trabalho. Aproveita as tonalidades que a luz do sol ou sua ausência oferece, à sua vista, à sua sensibilidade. Se alguém perguntar como é que sabe que está na hora e fazer o que gosta de fazer, ele, sem dúvida, responderá que é incapaz de dizer. Só sabe que percebe que a hora é aquela. Pronto. Ele começa a fazer. O senhor José começa a fazer. Não sabe ainda como vai continuar o que começou, mas vai fazer. Sentado, olhando para o nada, lembra-se do sonho. As mesmas putas. A cidade escura, úmida, em ruínas. As mesmas putas. O ônibus cheio de gente que passa rente à parede das casas. As mesmas putas. As ruas largar que dão em avenidas largas que são conhecidas, mas levam para a rua das putas, as mesmas putas. O ar fétido, umidade excessiva, fumaça, casas em ruínas, sujeira. As mesmas putas. O senhor José não sabia como se livrar das putas. Um incômodo com o qual, dizia sempre, estava cansado de lidar. Não sabia mais o que fazer. Aproveitar os flashes que tinha dos sonhos que sempre se repetiam. Pode ser uma ideia interessante. Não via maneira de se livrar das putas. Foi quando teve a ideia de começar o que começou a fazer. Não falou nada com Zuleica Sueli, mas tinha certeza de que, a certa altura, teria que contar pra ela. Muito curiosa. Boa pessoa, mas muito curiosa. Gostava de se pintar e o Senhor José não se incomodava. Tinha pena, na verdade. Sabia que Zuleica não era mais tão jovem e pensava que o exagero da pintura na cara só fazia tornar mais patética a situação de sua amiga. O senhor José era uma boa pessoa, um bom amigo e, de fato, não poderia ter a mais pálida ideia do que viria a acontecer depois que contasse para Zuleica o que iria fazer. Mas estava decidido. Pronto. Era hora de dormir!

Trecho

Foureaux, 26.09.22

No romance que tenho tentado escrever, a duras penas, Otacílio Piffio é o pseudônimo de um autor que escreve um romance intitulado O útimo d desejo de Otacílio Piffio. Ainda não sei que continuidade vou dar aos três trechos que já escrevi. Vasculhando os arquivos do computador, encontrei o texto que trago hoje e que resolvi inserir no romance. Vai ser parte de uma digressão que o protagonista do romance "escrito", no romance que eu escrevo (Otacílio Piffio), vai fazer diante de uma situação, digamos inusitada. Segue o trecho:

"Não quero a mirada da mediocridade a obscurecer os momentos de lucidez que, porventura, venham a me inundar a alma. Não mais ter que aguentar as caras tortas de quem acredita que um poema vale menos, bem menos, que tudo que alguém pode dizer sobre ele. Mesmo quem jamais “leu” o poema como seria de esperar. A dispensa do poema não é garantia de melhor abordagem teórica ou crítica ou analítica. Os detalhes de um poema contam. A discussão começa por conta da dúvida sobre o “excessivo” uso de vírgulas ou de pronomes relativos na composição de seu poema. Foi “decretado”, antes de tudo começar, que a biografia do poeta é dispensável, por foça de sua influência sobre o entendimento da “mensagem” do poema. Comecei a rir. Daí, um salto para a circunscrição do poeta e de seu poema na “série histórica” da literatura nacional à qual pertence, sem esquecer, é claro, o problema dos gêneros, subgêneros tipos textuais e quejandos que a poética – a de Dilthey ou a de Hegel, bem entendido –, exigem como conditio sine qua non. Eles não sabiam o significado da expressão, assim como desconheciam o bom uso da mesóclise. Patético."

Palavras

Foureaux, 22.09.22

Palavras são “seres” interessantíssimos. Parecem, às vezes, ter vida própria. Seus significados seduzem e confundem. Seu sentido pode mudar conforme a inflexão da voz ou o contexto em que aparecem. Um mundo praticamente mágico que muitos têm a ousadia de afirmar que conseguem dominar. Ledo engano! Um amigo colocou em sua página do facebook observações sobre duas palavras: enfezado e gari. Na onda de preguiça que está citando a passar por aqui, deixo os comentários para o vosso deleite (imitando expressão alfacinha!)

Como surgiu a palavra “ENFEZADO”. Um pouco de História: a cidade do Rio de Janeiro, como conhecemos hoje, é fruto de um processo de modificação que foi acontecendo ao logo do tempo. No século XIX, ela estava bem longe de ser chamada de cidade maravilhosa. Pessoas brutas, ruas esburacadas, sujas e esgoto faziam naturalmente parte do cenário da pequena cidade do Rio de Janeiro. No século XIX, quem sofria bastante com esse cenário eram os “Tigres”. Muita gente atravessava a rua quando cruzava com um deles. Muitos podem se assustar ao ouvir isso hoje em dia, mas naquela época isso tudo fazia parte do cotidiano. Os tigres não eram animais, eram africanos escravizados que faziam o serviço doméstico. Um dos trabalhos dos tigres era jogar os dejetos dos seus senhores na Baia de Guanabara e nas Lagoas. Existiam pontes de madeira exclusiva para isso. De tardinha, os escravos saiam para jogar os dejetos com uma tina na cabeça cheia de fezes. Às vezes, o conteúdo vazava e as fezes escorriam pelos seus corpos, nas peles que ficavam manchadas. Quando isso acontecia eles eram chamados de “tigres” devido às manchas. Algo bem pior acontecia com frequência, as tinas estouravam, o escravo ficava furioso, e muitos diziam: “O escravo está enfezado”. Enfezado, isto é, cheio de fezes... (Texto: Marcelo S. Souza &

Imagem: Revista A Semana Ilustrada).

A origem do termo “gari”. No Brasil, as ações iniciais de limpeza das vias públicas aparecem na época do governo imperial. No ano de 1830, uma lei da capital federal estipulava que houvesse o “desempachamento” das ruas da cidade. No caso, além de retirar o lixo, a lei de natureza “higiênica” determinava que as mesmas ruas fossem livradas dos mendigos, loucos, desempregados e outros animais ferozes. Uma das primeiras ações organizadas para o serviço de recolhimento do lixo urbano apareceu no Brasil quando o governo imperial contratou o francês Aleixo Gary para transportar o lixo produzido no Rio de Janeiro para a ilha de Sapucaia. O sobrenome do contratado acabou sendo utilizado para a designação feita a todos os funcionários que realizam a coleta de lixo nas cidades. (Texto: Rainer Gonçalves Sousa, postado originalmente em O Rio de Janeiro que não vivi /facebook)

Do lado de lá

Foureaux, 21.09.22

Nas duas últimas semanas, fomos quase sufocados com tantas matérias e fotos e vídeos e comentários e textos e notícias sobre os funerais da Rainha Elizabeth II, A Rainha Isabel II, como conhecida em Portugal. Paralelamente – e para mal dos pecados de cada um dos cidadãos de bem viventes neste rincão, do lado de cá do grande charco – outra avalanche de igual pressão e conteúdo quase nulo também nos assaltou: a sequência interminável de promessas vazias, de mentiras deslavadas e de delírios absolutamente inenarráveis – para deixar de lado outros aspectos que beiram o parético – da “propaganda eleitoral obrigatória e gratuita”. Não posso afirmar, porque não tenho conhecimento para tanto, mas tenho a impressão de que essa excrescência da criatividade rasteira e falaciosa da “inteligência humana” só existe por aqui. Pior, financiada por dinheiro arrecadado dos inúmeros e incontáveis impostos que pagamos a todo momento. Entre os dois, meu coração não balança. De olhos fechados, escolho a primeira opção, com todos os senões. Assim sendo, recebi de um amigo português, o reencaminhamento da mensagem de Facebook que segue. Gostei, por isso mesmo, partilho!

Texto publicado por Luís Russo Pistola

Ao cuidado do José Rodrigues dos Santos e do João Adelino Faria e da péssima (com expoente 99) cobertura que fizeram do Funeral de Estado da Rainha Isabel II do Reino Unido: bastava irem à Wikipedia para aprenderem que o Orbe não é “uma esfera com uma cruz”, “semelhante à esfera armilar portuguesa” nem “representa o domínio britânico sobre o mundo no seu passado imperial”. O Orbe é um símbolo cristão de submissão do mundo – do poder temporal – a Cristo. O “Império” é o de Cristo, não de nenhum povo em particular. Como se lê e bem na Wikipedia: “O orbe simboliza o domínio de Cristo (a cruz) sobre o mundo (o orbe), literalmente sujeito por um governante terreno (ou, por vezes, de um ser celestial como um anjo). Quando é seguro pela própria figura de Cristo, o objeto é conhecido na iconografia ocidental como Salvator Mundi (Salvador do Mundo).” E já agora:

  1. a) a Monarquia Britânica não está em crise – tem um Rei desde que a mãe exaltou o último suspiro e tem milhões na rua a apoiá-la -;
  2. b) o “Rei Carlos III” não é uma incógnita já que esteve a ser preparado por 73 anos para fazer o que está a fazer e nos últimos anos até já fazia boa parte das funções em representação da monarca;
  3. c) o seu reinado não “começa hoje” nem “amanhã”, começou quando a mãe morreu e já teve uma semana de actos oficiais feitos como monarca, como é óbvio;
  4. d) quem vê as manifestações de afecto de que tem sido alvo e lê os comentários às mesmas percebe que é bem mais popular do que querem fazê-lo crer e que a mudança em uma semana do número de pessoas que nas sondagens dizem apoiá-lo mostra isso mesmo; e que se preocupam com a sua saúde com a agenda carregada que tem tido independentemente da idade;
  5. e) os britânicos não se “despediram da sua Rainha”, despediram-se dos restos mortais da mesma;
  6. f) a Monarquia Espanhola não está em risco e o Rei Juan Carlos não é “impopular” (bem pelo contrário) nem o será depois de morto, como é óbvio;
  7. g) se Carlos III é traduzido, lógico é que o façam com Guilherme e Catarina, Príncipes de Gales, com os príncipes Jorge e Carlota, com o Duque Henrique, etc, porque dizer uns em inglês e os outros em português é só piroso e estúpido;
  8. h) e por falar em estúpido, as cerimónias militares não são “próprias de ditaduras e não vistas nas ‘democracias modernas’, são a representação da união do povo com o Soberano e são próprias de estados que não sejam falhados e ainda saibam o que é a dignidade do Estado, assim como a existência de Protocolo de Estado, o garante de que tanto direitos de todos são respeitados e honrados e que a representação do Estado não ofende os seus povos.
  9. i) “os jovens não estão afastados da Monarquia”, caso contrário não estariam em incrível número nos mais de 750 000 que passaram longas horas para fazer uma vénia em frente do caixão da defunta Rainha, muitos em copiosas lágrimas, ou a encher as ruas para saudar o novo Rei: estão afastados, sim, das repúblicas das bananas como a nossa que não consegue juntar 750 pessoas livremente a comemorá-la, muito menos a chorá-la.

De uma amiga

Foureaux, 19.09.22

Tenho uma amiga muito querida. O nome dela é Glória. Fomos colegas de trabalho durante uns bons anos. Hoje somos amigos e, ouso dizer, confidentes. Ela passa atualmente por momentos muito difíceis, digladiando com a maldade de uma filha que há mais de uma década impede que conheça sua neta Emma. Glória não conhece a Emma. A avó foi obrigada a perder a convivência com a neta em seus primeiros netos. A neta, durante todo esse tempo foi bombardeada com informações equivocadas, maldosas e mentirosas da mãe. A situação é dificílima. Para completar o "quadro da dor"(Adoro esta expressão que aprendi com uma outra amiga gaúcha!), a juíza responsável pelo processo fica postergando a decisão final, a obrigatoriedade de cumprimento da sentença que ela mesma exarou e... Bem, resolvi colocar aqui o texto que minha amiga Glória escreveu para um grupo de "avós alienados". É triste: ela não é a única. Segue o texto:

“EM DEFESA DOS AVÓS IMPEDIDOS DE CONVIVER COM SEUS NETOS

Glória M. G. de Mello

Desejo me manifestar em meu nome e em nome de um imenso número de avós impedidos de conviver com seus netos. Os filhos dos nossos filhos são a continuação de nossas famílias e reacendem os sentimentos despertados pela maternidade e pela paternidade. Criam uma nova forma de amor: mais forte, mais intensa, mais profunda.

Quando nossos filhos e/ou seus cônjuges – na maioria, ex-cônjunges – impedem que nossos netos convivam conosco para nos causar sofrimento, por saberem do imenso amor que lhes dedicamos, é criado um círculo vicioso que também atinge, de maneira brutal, as crianças. Elas não compreendem por que não podem receber o carinho e usufruir da companhia dos avós. A lacuna assim criada deixa marcas por toda a vida.

São muitas as formas de alienação de avós, porém a mais utilizada e danosa é a teia de mentiras e acusações envolvendo-os. Na falta de um motivo real, além da própria torpeza, para afastá-los dos netos, os alienadores recorrem à criação de falsas memórias nas crianças, incapazes de saber se os fatos ocorreram, por causa da pouca idade. Assim, passam a rejeitar os avós. Como se isso não bastasse, são feitas falsas denúncias de abusos e maus-tratos, além da invenção de atitudes desabonadoras, sem a apresentação de qualquer prova.

Além do sentimento de rejeição e humilhação, surge em nós a revolta. Somos injustamente acusados e nos cabe provar nossa inocência: somos culpados até prova em contrário.  Ao buscarmos o apoio da Justiça para que seja garantido nosso direito à convivência com nossos netos, um direito que também é destes, encontramos desconfiança, pré-julgamento de nosso caráter, ataques de quem deveria nos defender, vemos os processos se arrastarem durante anos fazendo-nos perder a infância de nossos netos. Ninguém poderá nos devolver esses anos ou reparar essa perda.

Em geral na terceira idade, nós, avós alienados, já lutamos para educar nossos filhos e esperamos a recompensa da alegria que brota do convívio com nossos netos. Porém, passamos a acumular frustrações e a receber insultos que nos levam à depressão e a todos os danos que ela causa ao nosso bem-estar físico e mental.

Ao sermos falsamente acusados e nos sentirmos desprotegidos em idade avançada, vem-nos à mente a imagem de Prometeu, acorrentado a um rochedo, com uma águia a lhe devorar o fígado. Como Prometeu é imortal, como o amor dos avós, seu fígado se recompõe durante a noite e sua tortura não tem fim. Somente Hércules o salva.

Procuramos, na justa aplicação das Leis, o nosso Hércules.”

 

 

 

 

 

Passado

Foureaux, 17.09.22

As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico, e o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria nesse instante. Se conseguimos conquistar com braço forte o penhor dessa igualdade, o nosso peito desafia a própria morte em seu seio, ó liberdade. O nosso peito desafia a própria morte! Ó pátria amada, idolatrada, salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vivido de amor e de esperança à terra desce. Se a imagem do cruzeiro resplandece em teu formoso céu, risonho e límpido, gigante pela própria natureza, és belo, és forte, impávido colosso, e o teu futuro espelha essa grandeza, terra adorada, entre outras mil, és tu Brasil, ó pátria amada! És mãe gentil dos filhos deste solo, pátria amada, Brasil!

Fulguras, o Brasil, florão da América, deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo, iluminado ao sol do Novo Mundo! Teus risonhos, lindos campos têm mais flores do que a terra, mais garrida. Nossos bosques têm mais vida, nossa vida no teu seio, mais amores, ó pátria amada, idolatrada, salve! Salve!

O lábaro que ostentas estrelado seja símbolo de amor eterno e diga o verde-louro dessa flâmula: “Paz no futuro e glória no passado”, mas, se ergues a clava forte da justiça, verás que um filho teu não foge à luta, quem te adora nem teme a própria morte, terra adorada, entre outras mil és tu, Brasil, ó Pátria amada! És mãe gentil dos filhos deste solo, pátria amada, Brasil!

Hoje deu vontade de fazer uma coisa que fiz numa das primeiras aulas de Língua Portuguesa, no primeiro semestre do curso de Letras. Pode parece anacrônico e sem sentido, mas o professor, numa de suas aulas, fez esse exercício conosco para introduzir o estudo da gramática tradicional, então obrigatória – que falta faz ela hoje!!! Colocávamos em ordem direta os versos do hino, como se fosse uma sequência de períodos e em seguida, fazíamos destes a análise sintática. Depois, durante a correção, discutíamos com o professor e passávamos para o capítulo posterior. Numa de outras aulas, fizemos o mesmo com um canto d’Os lusíadas. A escolha era do professor. Aliás, nesta aula, o mesmo exercício, com os versos da epopeia, serviu de avaliação parcial do semestre. Aprendia-se a Língua Portuguesa em seu funcionamento, para depois estabelecer e reconhecer as regras deste mesmo funcionamento. Uma didática que se perdeu no tempo, infelizmente.

 

De passagem

Foureaux, 14.09.22

Meu professor de análise sintática era o tipo de sujeito inexistente.

Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular como um paradigma da primeira conjugação.

Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto.

Casou com uma regência.

Foi infeliz.

Era possessivo como um pronome.

E ela era bitransitiva.

Tento ir para os eua.

Não deu.

Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.

A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.

Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.

 

Este texto não é meu. Vi-o como postagem, de Facebook, de um sujeito chamado Dagoberto Wagner. Não sei quem é. O autor da postagem, coloca aspas no início e no fim do texto. Entre parênteses, embaixo, está escrito Paulo Leminski. Não conheci este poeta. Vi dele algumas fotos. Li algumas linhas, mais de comentários do que dele próprio. Sei que ficou com fama de transgressor. Cá entre nós, tinha cara de quem gostava de uma birita. Fumava, se não me equivoco. O que se passa é que foi mais um desses fenômenos que o tal “mercado” gosta de enaltecer e que acaba, para o bem e para o mal, entrando na tão famigerada “série literária”. Quem cursou Letras nas décadas de 70 e 80 do século passado vai entender estas aspas. Mão vou explicá-las. Bom. Ao fim e ao cabo, copiei e digitei aqui, para não ficar muito mais de dez dias sem colocar nada neste blogue que já tem mais de década de existência e que, até hoje, continua sobrevivendo, resiliente, à sombra do oblivium... Nullam id enim ipsum...

Graciliano Ramos

Foureaux, 01.09.22

Faz tempo, em três palavras destruí quase uma década de literatura. Isso me disse um amigo, à altura. A “destruição” se referia a Graciliano Ramos e sue romance Vidas secas. Naquele momento, não tinha a menor ideia da bobagem que acabava de dizer. O amigo que me disse o que disse, indicou-me três outros livros do autor: Caetés, Angústia e Memórias do cárcere; a serem lidos nesta mesmíssima ordem, se não me falha a memória. Foi o que fiz. E não me arrependi nem um pouco. Agora, aposentado, retomo a leitura de livros que já li e reli, sobre os quais dei aulas e escrevi artigos. Um prazer inolvidável. Assim foi que retomei Infância, que acabei de reler. Que passeio. Numa direção contrária à de Memórias póstumas de Brás Cubas, o livro de Graciliano Ramos faz uma espécie de inventário da infância do autor. Assim dizem e consideram os comentaristas e críticos da obra. Fico como a Maria vai com as outras. A leitura agora é de puro deleite, sem as obrigações de me prender a protocolos e objetivos “concreto” a serem ministrados e depois avaliados pelo corpo discente que tanto, de mim, já ouviu. Uma amiga, comentando sobre leituras e leituras, dize que se trata de um livro cruel. Pode ser. Ainda não tinha pensado este exto de Graciliano sob esta perspectiva. A julgar pelo requinte dos detalhes da voz narrativa e pela agudeza de visão de mundo, sob a lente de uma criança que chega à adolescência (o último capítulo, se não me equivoco, sugere esta passagem, de maneira magistral, obviamente!), a assertiva faz sentido e, até prova em contrário, procede, se sustenta. Fato é que as pessoas e situações encetadas pelo relato. Curioso é perceber que este, dos livros que reli de Graciliano até agora, é o único em que a “urgência” de escrever não aparece. Por outro lado, aparece a leitura de nomes consagrados da Literatura universal, numa espécie de apanágio para o processo de amadurecimento da voz narrativa que se toma como aprendiz constante. Neste sentido, a descoberta de desejos outros, que não o de aprender, abrilhantam o já referido último capítulo de maneira contundente. A linguagem beira a ironia e o escárnio – coisa em nada rara na obra de Graciliano Ramos – fazendo com que a crueldade apontada por minha amiga ganhe consistência relevância, até. A edição que reli é a da Martins Editora. esta edição constitui-se de volumes encadernados em capa dura, com estudos introdutórios assinados por notáveis da crítica literária nacional. Gente que desapareceu do “mercado”, graças à tecnologização dos processos de leitura e, por outro lado, da ideologização das “metodologias” e das “pedagogias” que, em sua “didática” perversas, acabaram por tornar a atividades destes que assinam tais estudos uma coisa “ultrapassada”, atada, para usar o jargão dessa parcela da população. Uma pena. Perdem aqueles que não sabem reconhecer o devido valor das coisas e o lugar que elas ocupam numa linha evolutiva da própria existência humana. OS capítulos de Infância me fazem lembrar de Vidas secas. Neste, cada “retrato” vai se juntando a outro, por uma espécie de fio condutor invisível, tênue, quase etéreo. As personagens vão se sucedendo em situações que acabam por construir um “enredo” que não se quer absoluto e determinante no fluxo de considerações do narrador e de suas personagens. Aqui, em Infância, estas personagens se perdem nas memórias de uma criança que vai avançando no tempo e na experiência de viver. Esta perda, em ada e por nada é pejorativa. Ao contrário, ela faz com que a voz narrativa se percebe um ser em construções e sabe reconhecer valores e lições em sua devida dimensão. Neste sentido, o capítulo em que tece seus comentários (anotados de memória, quero crer) sobre sua experiência com a justiça – eu diria que com a autoridade também – num episódio envolvendo seu pai é de um lirismo (cruel, nas palavras da amiga) cortante. Para usar termo corrente nas rodinhas da moda de hoje: cirúrgico. Ai que preguiça. O vigor de sua indiferença sobre a experiência com o religioso – o episódio que narra a descoberta da vocação religiosa e suas consequências chega a ser hilário – é de uma ironia quase incômoda, não fosse a pena do autor a torná-la legível. Outras passagens da infância num aterra ingrata soam no mesmo diapasão. As descrições – de pessoas, situações, coisas, acontecimentos, espaços e ideias – não foge ao figurino do autor. Um misto de descrença e sarcasmo com a constatação, implícita da inutilidade de tentar fazer o outro compreender o que para quem escreve parecer tão claro. O dilema que, a meu ver, ronda a escrita de Graciliano Ramos não deixa demarcar sua presença aqui. Pode ser que o texto recebe o epíteto de bildungsroman: romance de formação, expressão que identifica o tipo de romance em que o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, intelectual, social ou político de uma personagem é relatado (às vezes ficcionalizadamente) de forma pormenorizada. Geralmente, o “enredo” (as aspas se devem à fluidez do conceito no que diz respeito a Infância) se estende desde a infância da personagem até sua vida adulta. No caso específico deste romance de Graciliano Ramos, vai apenas até o início da adolescência, salvo engano de minha parte. De um jeito ou de outro, é livro de leitura imprescindível para quem diz gostar de Literatura. Fica o convite.