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As delícias do ócio criativo

As delícias do ócio criativo

Fevereiro 17, 2022

Foureaux

Uma vez mais, o texto que segue não é de minha autoria: por isto, as indefectíveis aspas! Como da outra vez, sei quem é o autor, mas prefiro não mencionar seu nome para não ensejar celeumas. Não quero meu nome em bocas de matildes e de detratores disso ou daquilo. Não me quero associado a um lado ou a outro, por conta de palavras que não são minas. Resolvi trazer aqui esta pérola porque o texto é isso mesmo, uma pérola de sarcasmo, ironia, deboche, galhofa e, de quebra, é um texto muito bem escrito. Pensem o que quiserem e queimem um pouco mais de fosfato para descobrir quem é o autor. Hão de se surpreender! E tenho dito!

“Desejando ardentemente admitido em rodas de intelectuais, pus-me a estudar os temas e a linguagem das publicações culturais e das entrevistas que as pessoas reconhecidamente letradas davam na TV. Meu intuito era saber os gostos e hábitos dessa gente, sem cuja companhia e aplauso a vida humana é, como todo mundo sabe, um tédio, um saco, um inferno. Após alguns meses de investigação, consegui delinear um quadro de normas de conduta, que ponho aqui à disposição de todos os que, como eu, somem a uma atração mágica pelos círculos de gente fina uma vocação incoercível de alpinista social. Aqui encontrarão a fórmula que abre as portas da admissão no grande mundo das pessoas belas e significativas, longe da opacidade cinzenta do anonimato.

Mas não pensem que se trata de um modelo rígido, de um conjunto de fórmulas prontas que qualquer um possa ir copiando sem a menor criatividade. O que importa é aqui menos a adesão expressa a uma tábua de mandamentos conhecida, como o ‘politicamente correto’ dos americanos, do que um tom, um jeito, um estilo sutil pelo qual a intelectualidade reconhece seus membros típicos e os distingue dos indesejáveis, penetras, bicões e caretas de toda sorte. Ao ler os preceitos que se seguem, trate de ir além da letra e captar, como se diz, o espírito da coisa.

  1. O tom certo é queixoso, de modo geral, contra a sociedade e contra a realidade, mas não pode cair no negativismo completo e deve permanecer soft o bastante para poder fazer coro com as campanhas da ética e da cidadania, que requerem um certo otimismo – aquele otimismo capaz de levar as várias classes a se congraçarem para promover fraternalmente a luta de classes. Você não deve falar mal de ninguém, exceto daqueles que a imprensa reservou especialmente para esse fim: Collor, Maluf, Quércia, Ricardo Fiúza, os empreiteiros. As demais pessoas famosas devem ser sempre mencionadas como portadoras de qualidades excelsas, de preferência mediante o uso das expressões ‘pessoa maravilhosa’, ‘um ser humano muito especial’, etc. De maneira nominal e individualizada, tais expressões aplicam-se a figuras do show business, dos negócios ou da vida cultural, principalmente aquelas que você nunca viu mais gordas, mas das quais todo mundo diz essas coisas. De maneira impessoal e coletiva, e a uma higiênica distância em caso de mau cheiro, aplicam-se aos pobres e às vítimas, categoria que compreende os meninos de rua, os sem-terra, os índios, os garotos e garotas de programa, os líderes do Comando Vermelho, as mulheres em geral e sobretudo aquelas que estão doidinhas para abortar, os cantores negros que vendem cinco milhões de discos, os gays e lésbicas, o Betinho, o candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva e alguns bicheiros cuja origem popular conta mais do que seus saldos bancários; excluem-se dela, porém, aqueles pentelhos que querem tomar conta do nosso carro e, de modo geral, os pedintes (os letrados sempre foram contra dar esmolas na rua; antes, porque atrasava a revolução; agora, porque acham um acinte esses sujeitinhos apelarem à caridade individual e apolítica dos transeuntes, boicotando a campanha do Betinho). Se por acaso você está na frente de uma câmera de TV, não há limites para o emprego da expressão ‘pessoa maravilhosa’: mas se lhe ocorre usá-la com relação a alguém que nunca foi chamado assim, faça isso logo, antes que o próximo entrevistado o faça.
  2. Se entrar numa disputa verbal, exponha suas crenças com forte convicção, mas não caia na esparrela de tentar provar que são verdadeiras. Caso você não o consiga, será considerado um chato e prolixo. Caso consiga, será odiado como um intolerante e dono da verdade. Sobretudo não use argumentos lógicos de espécie alguma, que são considerados autoritários e repressivos. Experimente alguma coisa mais liberal e progressista, como levantar a voz, fazer caretas e dar pulinhos como José Celso Martinez Correia ou fazer chantagem emocional, que são considerados meios legítimos e democráticos de persuasão. Caso falhem, recorra à programação neurolinguística, à hipnose ou a alguma outra forma de manipulação subliminar, que são todas bem aceitas pela comunidade educada como instrumentos adequados para fomentar a autenticidade nas relações humanas. Qualquer que seja o caso, repita várias vezes, durante a performance, o mote: ‘Não há verdades absolutas’, e verá que esta ideia deixa as pessoas muito felizes e aliviadas, mesmo porque elas se sentiriam arrasadas caso topassem com alguma verdade que se recusasse a mudar conforme os seus desejos. Se tiver encantos físicos, use-os abundantemente em defesa de suas teorias: eles são um dos mais fortes argumentos entre as pessoas cultas. Se não conseguir persuadir ninguém, pelo menos adquirirá uma fama de sedutor, palavra que, embora designe um crime previsto no Código Penal (Art. 217), se tornou, talvez por isto mesmo, um dos mais altos elogios que se pode fazer a alguém nos círculos intelectuais.
  3. Quaisquer ideias conservadoras ou que tenham a fama de sê-lo devem ser sempre tratadas como preconceitos, por mais conceptualmente elaboradas que sejam – de modo que a palavra preconceito deixe de designar de modo genérico qualquer julgamento proferido por hábito irrefletido e passe a rotular determinadas ideias em particular, isto é, aquelas que não são muito apreciadas nesse ambiente seleto. Se você aprender a usar direitinho a palavra preconceito, logo as pessoas passarão a concordar automaticamente com tudo o que você disser, pois têm horror a preconceitos.
  4. Identifique logo a minoria discriminada a que pertence – pois todo mundo pertence a alguma – e exiba-a como um cartão de ingresso: ela dá direito a ser bem recebido neste círculo. Não venha com essa de que não tem nenhuma. Se você não é preto, nem gay, nem judeu, nem baixinho, nem gordo, nem índio, deve pelo menos ter o peru pequeno. Não precisa sair contando isso para todo mundo; diga apenas que pertence à categoria dos fisicamente prejudicados, termo recém desembarcado que impõe o maior respeito.
  5. Qualquer que seja a posição social e a origem das riquezas do falante, ele deve dar a impressão de que teria tudo a ganhar e nada a perder com uma revolução comunista. O socialite, pois que os há de montão entre os intelectuais, deve sempre deixar crer que está mais solidário com os sem-terra do que com os seus colegas de diretoria do banco.
  6. Quando se trate de manifestações culturais, elas devem expressar, sobretudo, essa gama de sentimentos coletivos, e nada dizer ao público com que ele já não esteja disposto a concordar de antemão. Mas é importante dar a essa pasta homogênea de opiniões concordantes um status de heresia, de desvio, de marginalismo original e não-conformista, para que os ouvintes e espectadores possam todos sentir-se heréticos também, já que a coisa que mais faz um sujeito se sentir solitário e abandonado hoje em dia é ver-se fora da categoria dos excluídos.
  7. Em matéria de sexo, deve-se falar a mesma coisa que todo mundo, mas dando sempre a impressão de ser o primeiro a fazê-lo, de estar rompendo as regras estabelecidas e desafiando com incalculável ousadia a ira do convencionalismo repressor. Se tiver de admitir que é heterossexual, faça-o com discrição. Se mencionar a Aids, que seja num tom de vaga revolta contra o establishment. Caso sinta firmeza, diga algumas palavras contra o Papa, que não deixou nossas mães nos abortarem, o safado.
  8. Se alguém lhe perguntar sua religião, opte por uma destas: duendes, nenhuma, afro, new age (importada ou nacional), Lair Ribeiro, satanismo light. Não caia jamais na besteira de dizer que é católico, exceto se tiver fama de comunista, pois aí essa opção extravagante será bem acolhida por todos como saudável manifestação de hipocrisia. Muito do prestígio do Lula provém de as pessoas acharem que ele só é católico por conveniência.
  9. Quando puxarem a conversa para o lado literário e citarem alguma obra que você não conhece, afirme resolutamente que ela rompe com as convenções do gênero. Você agradará a todos e não terá a menor possibilidade de errar, pois há meio século não se publica no Brasil uma obra que não rompa novamente com alguma convenção literária do tempo de Walter Scott.
  10. No visual, você deve passar uma impressão de saúde, bem-estar e riqueza dignos de uma autêntica pessoa maravilhosa, ao mesmo tempo que em palavras sugere ser uma vítima de um mundo mau e sem sentido, onde um Deus maligno nos abandonou sem outro socorro além das camisinhas e da campanha do Betinho.
  11. Se lhe perguntarem de economia e política diga uma destas três coisas, ou, melhor ainda, todas elas: ‘Sou contra a privatização, mas isto não quer dizer que seja a favor da estatização’. ‘O socialismo faliu e a solução para o Brasil é o PT’, ‘O importante é que o movimento da massa não termine em pizza’.”

Fevereiro 15, 2022

Foureaux

Li o livro de uma sentada. Abri e fui até o fim, numa tarde apenas. Devo confessar que o li com vivo interesse. D princípio ao fim. No entanto, não sei dizer se gostei ou não. O interesse não levou à surpresa. Esta, por sua vez, não estimulou a jouissance que costuma acompanhá-la, pelo menos, algumas vezes. não. Li com interesse e só. Será isso um defeito do livro ou uma lacuna na/da leitura? Vou morrer sem saber. Nélida Piñon, nas orelhas do volume, traz Machado de Assis como matriz do modus operandi do livro que li. Terá sido a expectativa criada por esta ilação – também ela fruto de leitura... – a responsável por esta sensação indefinível que me ficou ao terminar o romance? Sim. Trata-se de um romance, ainda que as características mais comuns, tradicionais, clássicas deste exemplar do gênero narrativo não estejam presentes no arsenal narratológico utilizado pelo autor. Brasileiro, diga-se de passagem. Como a referência assinalada pela autora das orelhas. Ainda que tenha ficado, anos luz, distante desta. Talvez, esta seja outra consequência nefasta da expectativa insidiosa que se aninhou no inconsciente do leitor, eu. Essas coisas acontecem! O livro se chama O dom do crime. Seu autor, Marco Lucchesi. Seu verbete indica que foi professor visitante em “diversas instituições internacionais”. Deve ser algo de muito importante mesmo. Eu diria “instituições estrangeiras”. Internacionais, qualquer uma em solo pátrio pode ser. Basta levar em consideração alguns “critérios” das famigeradas agências de fomento” para enquadrar as atividades de investigação na/da terra brasilis. Mas vamos. Deixo de lado a chatice e reconheço seu “valor” – palavra perigosa... Afinal, ocupa uma cadeira na ABL! Como disse certa vez, a mesma autora aqui referida, a das orelhas: uma casa de notáveis. O livro gira em torno de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Fato irrecorrível. Usei o verbo “girar” propositadamente. A impressão que se tem é a de que a narrativa “age” como mariposa em torno da lâmpada em dia de chuva. Pois é. O crime a que se dedica o narrador, não se consolida como tal. Difunde-se em indícios e referências esparsas, pulverizadas num texto suposta e pressupostamente erudito, dado que cheio de referências explícitas ou não. Estas, por sua vez, são consideradas pela “orelheira” responsáveis pelo caráter “erudito” do romance. Hum... Sei não... Erudito? Só por conta das circunlocuções narrativas a que o texto se presta como suporte? Certo que o livro prendeu minha atenção. Mas... erudito. Sei não. De fato, o applomb do narrador mais lembra o de Brás Cubas, bem piorado. Penso que posso estar usando de muito rigor, mas faço-o assim mesmo. O defunto autor fica muito adiante do narrador de O dom do crime, mesmo com toa a generosidade do mundo. Ainda que o livro tenha prendido minha atenção e gerado satisfação ao final da leitura. Hum... soou ambígua esta afirmação, mas não me explico. Deixo a exegese de minha assertiva para quem, por acaso, venha a se interessar pela leitura do livro, depois de ler estas mal traçadas. Muita presunção de minha parte! Continuando...Num artigo (de Denize Bartolo Medeiros) que encontrei alhures (no portal ACADEMIA), li o seguinte: “Dono de profunda precisão verbal, Lucchesi não é um autor qualquer. Seu texto foge da simplicidade, mas se mantém aberto à criação. O resultado é uma mistura de prosa e poesia, numa linguagem que encanta e hipnotiza. Tradutor, ensaísta e poeta premiado, Lucchesi volta seu talento para outro gênero e se lança, pela primeira vez, ao romance com o aguardadíssimo O DOM DO CRIME. Lucchesi cria um delicioso narrador-autor, não identificado, que conta uma história para o futuro. Um homem do século XIX que, ao ser aconselhado pelo médico a escrever suas memórias, se lança não para a própria vida, mas sobre um crime passional, notícia no Rio de Janeiro de Machado de Assis. Esse misterioso narrador traça paralelos curiosos entre este assassinato, o julgamento que absolve o marido supostamente traído e a obra mais aclamada de Machado, Dom Casmurro.” A transcrição é literal, sem tirar nem por nada. Contive meu ímpeto de fazer algumas mudanças, digamos, técnicas. Duas na verdade: o nome do livro de Lucchesi ficaria com apenas a inicial maiúscula, e em itálico; como dar-se-ia (adoro mesóclise!) com o título do romance de Machado de Assis. Deixando, ainda uma vez, minha chatice de lado, dois dedinhos de prosa. Não sei se o texto é mesmo uma mistura de prosa e poesia. Não o li assim. Não percebi esta nuance. Isso pode ser, obviamente, falha minha. Depois, não considero o narrador “delicioso”. Não chega a tanto. Eu diria pretensioso, mas sou um chato. Por fim, na paráfrase que o autor do trecho citado faz do romance, escorrega na afirmação de que os paralelos são “curiosos”. De fato, há certa confusão, talvez causada pela presunção do narrador. Eu queria dizer autor, mas não vou me expor a tapas e pedradas. É isso. Vale a pena ler O dom do crime do tal professor titular de Literatura Comparada da "sacrossanta" UFRJ. Sorte maior terá quem pegar o livro de supetão, no escuro, de surpresa, sem nenhum tipo de indução. Seu prazer, ou desprazer, será genuíno, comme il faut. Ainda assim, repito: o livro é interessante.

Fevereiro 13, 2022

Foureaux

O texto que segue é uma carta. Não fui quem a escreveu. Cortei os nomes citados para preservar a intimidade dos envolvidos. Cortei outros nomes e indícios identitários pelo mesmo motivo. Quis colocar esta carta aqui pelo sabor, a fineza da ironia, a suntuosidade da linguagem, o vigor do sarcasmo e a inteligência demonstrados pelo autor da carta. Mantive o local e a data, retirando o “endereço” para manter um certo clima de suspense. A referência é implícita. O movimento é o de metonímia, por aproximação, contingência, não comparação/substituição. O leitor, se bem-informado, estará mais bem equipado para tentar identificar as peças que faltam. O quebra-cabeça é divertido. Eu, simplesmente, adoraria ter escrito uma carta como esta para um certo número de destinatários, por conta de uma série de motivos. Mas já não o farei, por decurso de prazo e por estar gozando do ócio criativo que tanto prazer e gratificação me dá! Puntoi i basta. Segue a carta.

“Rio, 10 de fevereiro de 1996.

Ilmo. Sr. (1) – (...)

Prezado senhor,

Escrevo-lhe sem a menor ilusão de ver minhas palavras publicadas, ao menos sem cortes estratégicos que, extirpando delas toda a sua substância argumentativa, as reduzam a mero pretexto para dar um ar triunfante a qualquer resposta idiota que se estampe ao seu lado.

Na verdade, não escrevo esta carta para sair na (A), mas para fazer dela mais um capítulo de meu livro em elaboração, (B), a sair ainda este ano, obra inteiramente consagrada, como se vê pelo título, ao estudo das manifestações cerebrais de pessoas como V.Sa. Eis o motivo por que lhe remeto estas linhas. Julguei que não ficaria bem publicar este capítulo sem dar prévia ciência dele ao personagem: seria fazer de besta um sujeito que já se faz de besta por si – uma redundância intolerável, esteticamente. E caso V.Sa. fareje em minhas palavras uma intenção um tanto desrespeitosa, saiba que suas células olfativas não o enganam de todo. Mas não vá me dizer que está ofendido. Pois o assunto de que pretendo lhe falar é o artigo de sua autoria, ‘(C)’, e não posso crer que V.Sa., ao escrevê-lo, julgasse estar fazendo coisa digna de respeito. Inocência tem limites.

Não posso crer, por exemplo, que V.Sa., ao reduzir a reputação literária de (2) a mero efeito do deslumbramento provinciano ante as amizades internacionais do poeta, ignorasse realmente a distinção entre ser amigo de escritures célebres e receber louvores críticos de escritores célebres. V.Sa. retrata (2) como ‘uma figura típica do nosso meio literário – o amigo de notáveis’, e cita dois casos similares: Gerald Thomas, o antigo de Samuel Beckcett, e Diogo Mainardi, o íntimo de Gore Vidal. Mas não consta que Beckett ou Vidal tenham atestado jamais a qualidade artística das obras desses seus amigos. Nem é verossímil que nossa plateia, por mais caipira que fosse, se impressionasse antes com as amizades VIPs de Tolentino do que com os louvores à sua obra, firmados por Jean Starobinsky, Saint-John Perse e Yves Bonnefoy, entre outros. É uma distinção elementar, que não pode ter escapado a V.Sa., embora V.Sa. tentasse o possível e o impossível para fazê-la escapar dos olhos do público.

Também não posso crer que V.Sa., não sendo nem um pouquinho cabotino, acredite seriamente que é mais provinciano dar crédito ao juízo crítico de Bonnefoy ou Starobinsky que ao de (1).

Menos ainda posso admitir, a sério, que V.Sa., enxergando tanto provincianismo no encantamento da plateia local ante as amizades célebres do poeta, não visse nenhum na incredulidade caipira que as põe em dúvida.

Porém, o mais inadmissível de tudo, excluída a hipótese de uma inocência patológica, é que V.Sa. ache realmente típico do provincianismo nacional o fato de darmos acolhida a recomendações críticas que, antes, foram aceitas em Bristol, Essex e Oxford; pois isto equivaleria a dizer que tais localidades, antecedendo-nos no deslumbramento bocó ante uma obra que só vale pela autopromoção, são ainda mais tipicamente brasileiras e caipiras do que Rio e São Paulo. Também é inverossímil supor que, no entender de V.Sa., Starobinski e tutti quanti escrevessem louvores a (2) no propósito de fazê-los acreditar pelo público brasileiro, em vez do europeu a quem se dirigiam e a quem, na época, se destinava toda a produção escrita do poeta; pois é essa hipótese maluca que está subentendida quando V.Sa. diz que os crédulos somos nós, e não os europeus que antes de nós aplaudiram (2); ou essa, ou uma outra mais maluca ainda, segundo a qual não somente os três figurões citados, mas ainda W.H. Auden e Giuseppe Ungaretti, teriam elogiado a poesia de (2) por pura amizade, abdicando de toda probidade crítica e armando um monumental engodo do qual teria vindo libertar-nos, por fim, o tirocínio providencial de (1). E enfim, não pode ser que V.Sa. imagine, no pleno uso de seus neurônios, que os meios literários nacionais foram tão subservientemente caipiras ao ponto de esperar pela consagração europeia para reconhecer um poeta brasileiro, se na década de 60, antes do exílio europeu, ele já estava mais que consagrado aqui mesmo pelo aplauso de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lêdo Ivo, Ênio Silveira e mais não sei quantos.

Não: ninguém pode acreditar que V.Sa. escreva essas coisas a sério.

Mas V.Sa. vai mais longe. Diz-nos que enxerga, nos versos de (D), uma poesia que é, ao mesmo tempo, ‘de costumes’ e ‘escrita por um simbolista tardio’. Devemos crer então que um professor de literatura da USP ignora as definições de estilos de época? Que não sabe que literatura de costumes não existe no simbolismo?

Mas, não contente com isto, V. Sa. ainda nos diz que essa literatura de costumes descreve ‘a aventura espiritual de uma consciência cristã’, como se fosse possível uma autoridade intelectual do seu porte ignorar que toda literatura de costumes é, por definição, alheia a essas altitudes místicas. Ou será que ignora mesmo? Afinal, o escritor que conseguisse inventar uma coisa como a literatura de costumes simbolistaespiritualista teria mesmo operado um tour de force digno dos louvores de muitos Starobinskis.

Aí os termos do problema se definem melhor: ou V. Sa. está com tretas, ou é um ignorante muito metido a besta.

Esta última hipótese é reforçada por alguns indícios, como por exemplo o fato de que V.Sa., no tom de quem fala a coisa mais óbvia e arquissabida, qualifique Alberto Torres de ‘conservador’, ignorando toda a linha de investigações que, inaugurada há mais de trinta anos por Barbosa Lima Sobrinho, já mostrou a falácia dessa rotulação.

Outro indício é que qualifica de atrasado no tempo o engajamento político de (E), mostrando que não leu sequer as datas de composição dos poemas, que atestam sua contemporaneidade aos acontecimentos que os inspiram. Também indica que V. Sa. não leu (E) o fato de que acuse o autor de ‘ignorar as relações entre o exílio individual e o processo político coletivo’, quando essas relações constituem precisamente o único tema do livro. Talvez V. Sa. queira dizer que elas não são como o livro as descreve, mas neste caso deveria dar-nos alguma ideia, por vaga e alusiva que fosse, de como elas são na real idade, mas V. Sa. se abstém criteriosamente de tocar neste ponto, o que me leva a suspeitar que as ignora por completo.

Há fortes argumentos, também, em favor da hipótese das tretas. Pois treta, treta mesmo (se não é quid pro quo verbal de quem simplesmente não sabe escrever?), é dizer que (2), ao atribuir a uma freira do século passado a autoria de seus poemas de feitio clássico, se ‘ocultou sob uma máscara moderna’. V. Sa., digo eu, ainda não viu nada: de mais moderna ainda se fez Marguerite Yourcenar, que se disfarçou de imperador romano.

Mas não são só (2) e Yourcenar que atribuem suas palavras a outrem. V. Sa. também sabe fazer isso, como se vê pelo fato de que, explicando a fama literária de (2) exclusivamente pelas amizades e pela autopromoção cabotina, escreve também que ‘vez por outra, alguém ameaça desmascarar o suposto charlatão’, procurando dar a impressão de que são outros e não V. Sa. quem faz, a um tempo, ameaça e suposição.

Ora, quem é tão hábil não pode ser ao mesmo tempo tão besta, a não ser que possua essas duas qualidades em planos diferentes. Pois a mim me parece que é precisamente esta a solução do problema acima exposto: V.Sa. tem de ignorante e besta em literatura o que tem de destro e arguto na maledicência.

Mas, tal como a inocência, a destreza tem limites. Por mais que salte com a habilidade de um babuíno de um pretexto ao seu contrário, V. Sa. mostra enfim que não tem nada mais a nos transmitir, no fundo, senão isto: que não gosta muito do poeta, mas não sabe muito bem por que não gosta. E se para expressar este sentimento tem de armar uma tamanha rede de equívocos e contrassensos, é porque é próprio do ser humano, quando embirra com alguém por motivos irracionais, inventar contra ele toda sorte de argumentos contraditórios que o condenem per fas et per nefas.

Pois a única objeção crítica propriamente dita que, por trás de todo o seu palavrório, V.Sa. faz à obra poética de (2), é que, além de arcaizante na forma, não é muito progressista no conteúdo. O quanto vale esta objeção, no entanto, evidencia-se pelas seguintes linhas, publicadas num editorial do jornal do Partido Comunista trinta e três anos atrás, que condenava o simplismo crítico das classificações bipolares: ‘Segundo este esquema, tudo o que temos de fazer é classificar as pessoas, os atos e os fatos em ‘revolucionários’ ou ‘reacionários’. Feito isto, está concluída a ‘tarefa’. Como poderemos compreender o realidade, mantendo esta atitude?’

Trocando apenas as palavras ‘reacionário’ e ‘revolucionário’ pelos seus equivalentes da moda, ‘conservador’ e ‘progressista’, temos aí um perfeito retrato do método crítico de V.Sa., tão grosseiro e simplório no seu esquematismo, que três décadas atrás já era desprezado até pelos comunistas de carteirinha. Vá ser arcaizante assim lá em Oxfordgrado.

Para terminar estas considerações, desejo aliviar a tarefa de V. Sa., dando-lhe prontas algumas das motivações sórdidas com que poderá explicar, numa resposta fulminante, minha decisão de escrever-lhe a presente carta:

  1. desejo fazer crer ao público que sou membro do círculo VIP de (2);
  2. desejo, mutatis mutandis, fazer autopromoção às custas de um (1) como (2) fez com o outro;
  3. não me aguento (...) de vontade de sair no (...);
  4. tenho com o poeta (2) um convênio de Inter badalação e defesa mútua das nossas reputações;
  5. eu e (2) formamos em segredo um casal gay;
  6. (2) me pagou para escrever estas coisas, ou, pior ainda, prometeu e não pagou;
  7. escrevo-as de graça por ser um puxa-saco compulsivo;
  8. não existo e sou um pseudônimo de (2);
  9. (2) não existe e é um pseudônimo deste que ora se despede de V.Sa.,

Atenciosamente, (3).”

Fevereiro 10, 2022

Foureaux

O texto que segue, eu o escrevi de uma sentada agora no finalzinho do dia Fiquei pensando num romance. Aparentemente, policial, mas eu não o quero assim. Fui escrevendo sem pensar muito, deixando fluir as ideias que me vinham. Parei com dois parágrafos e resolvi colocá-lo aqui como uma proposta, um convite, quase um desafio. Todo mundo sabe que o romance, como gênero narrativo, teve nos jornais, uma de suas primeiras manifestações materiais no mundo moderno. O famigerado "folhetim" fez muito sucesso. Algumas vezes, ao longo da História, mais de uma pessoa participou da confecção destes folhetins, simultaneamente. A proposta, o convite, o desafio: cada leitor deste trecho escreve dois parágrafos dando continuidade aos que eu escrevi. Ao fim de um tempo, teremos material, quem sabe, para consolidar o tal romance a inúmeras mãos. Tenho certeza quase absoluta de que  convite, o desafio, a proposta vai morrer na casca. Ainda assim, eu tento. Quem quiser que se habilite. Segue o texto:

 

O nome do romance é A última vontade de Otacílio Piffio. Otacílio Piffio era também o pseudônimo do autor. Na reunião do júri com o editor e o mecenas do concurso, a opinião foi unânime. Era o vencedor. O romance foi selecionado entre outros 3725. Destes, 2400 passaram por uma triagem. Trezentos professores universitários de diversas partes do país leram 80 romances cada e selecionaram dois. Os 600 selecionados passaram pelo crivo de um júri de 10 personalidades literárias nacionais que, por sua vez, selecionaram três cada um. Da mesma forma, o júri oficial leu os trinta selecionados e escolheram o melhor. A última vontade de Otacílio Piffio. Na reunião de registro do vencedor, foi revelado o nome do autor da obra. Para surpresa de todos os jurados era um professor universitário de 67 anos de idade. Consternação. Susto. Sarcasmo. Estas foram as reações de cada um dos jurados. O editor e o Mecenas não conheciam o autor. Os outros três, sim. Era óbvio, o incômodo. O resultado era irrecorrível, conforme o edital. Havia um jornalista convidado para funcionar como fiel da balança. Ele não conhecia ninguém naquela sala. Por dentro, divertia-se com a situação. Percebeu o constrangimento. Não entendeu muito bem o porquê dele imediatamente. No entanto, na medida em que os sussurros eram trocados e os olhares enviesados se cruzavam naquela sala, densamente eletrificada pelo mal-estar causado pelo resultado revelado, o jornalista ria-se por dentro e entendeu tudo. Não havia segundo colocado. O prêmio ia, definitivamente para o tal professor malquisto. O mecenas, sem perceber muito bem o que passava, perguntou se havia algum problema. Silêncio absoluto. O editor, ciente da situação, tentou descontrair o ambiente. Contou uma piada. Ninguém riu. Não havia o que fazer. Não havia segundo colocado. Não havia a menor possibilidade de se ter outro resultado. O presidente do júri ainda tentou, sem sucesso, argumentar que poderiam fazer uma segunda rodada de avaliação. O argumento foi o de que, apesar da unanimidade pelo resultado, havia outra questão: alguns pontos do romance não foram assim tão merecedores de premiação. Os outros dois jurados hesitaram. O editor deu a martelada final. O campeão era o professor. O romance A última vontade de Otacílio Piffio. Seiscentas e sessenta e seis páginas de texto. Um calhamaço. Dez capítulos de sessenta e seis páginas cada, mais uma “coda” de seis páginas. Um cartapácio. Números cabalísticos, pensou o jornalista.

******

A camareira, pressurosa, abriu a porta. O aviso de “Não me perturbe” estava na porta. Mesmo assim ela abriu. Havia dois dias que o aviso estava ali. Ela consultou as colegas dos outros turnos e todas afirmaram não ver a porta sem o aviso. Então, decidiu entrar. O quarto estava escuro. Cortinas cerradas. Cheiro de comida guardada, de vinho azedo, de vela queimada. Pediu licença. Disse “bom dia”. Nada. Nenhuma resposta. Entrou. A cama estava desfeita. Papeis sobre a mesa cheia de tocos de cigarro, meio copo de vinho e restos de farelo de pão. Os talheres meticulosamente colocados sobre o prato, comme il faut. Foi catando as migalhas de pão. Jogou os tocos de cigarro no lixo. Dirigiu-se ao banheiro. Cirurgicamente limpo. Trocou as toalhas. Recompôs a cesta de gadgets de higiene. Lavou o banheiro. Fechou a porta e voltou ao quarto. Ao contornar a cama, deu um grito. O corpo de um homem, nu, estendido no chão. Sua expressão era tranquila. Não havia sinal de violência. Ela pegou o telefone e chamou a gerência. Em pouco menos de uma hora, um investigador policial chegou. Entrou no apartamento em que estavam a camareira, o gerente e mais um funcionário. Ninguém tinha tocado no corpo. A equipe de perícia chegou em seguida. O investigador fez algumas perguntas, pediu que os três comparecessem à delegacia no dia seguinte para tomar seus depoimentos. Um fotógrafo registrou tudo. Uma senhora, muito calmamente, recolheu tudo o que encontrou sobre a mesa, no chão. Tirou as roupas do morto do armário e colococou em sua mala. Perguntou se a camareira encontrou alguma coisa no banheiro. Nada. Saiu com tudo num carrinho de mão. O silêncio era constrangedor. A camareira choramingava um pouco. O gerente, nervoso, não queria escândalo. O outro funcionário olhava tudo com cara de quem não entendia nada do que se passava. Em pouco mais de duas horas, o quarto estava limpo, pronto para receber outro hóspede. A polícia já tinha ido embora quando o telefone da gerência tocou. A recepcionista passou a ligação para o escritório central, onde estava o gerente. Este, ao atender, levantou a sobrancelha esquerda. Disse meia dúzia de monossílabos. Pegou um envelope guardado no cofre e saiu. A camareira viu quando ele atravessou a rua. Ela esperava pelo marido que a ia buscar todos os dias. Chovia forte. O dia acabava numa melancolia úmida, mofada, enfadonha. A camareira deu um suspiro e acendeu um cigarro. Escureceu. Mais quinze minutos e o marido da camareira chegou. O gerente voltava para o hotel: estava na hora de concluir seu expediente. Tinha que passar informações e o “caixa” para o seu substituto no turno da noite. O funcionário que acompanhou a chegada da polícia já tinha ido embora. Morava bem ao lado do hotel. Depois de jantar, ele ligou o rádio e sentou-se diante da janela que dava para o jardim no fundo de sua pequena casa. Pegou um livro para ler. Tomou um gole de chá. Ligou o rádio. O locutor anunciava que A última vontade de Otacílio Piffio era o romance ganhador do prêmio daquele ano na cidade. O funcionário engasgou-se com o chá. Franziu a testa. Desligou o rádio. Fechou a janela e foi dormir.

Fevereiro 09, 2022

Foureaux

Não gosto de poesia de ocasião. Aliás, não gosto de Literatura de ocasião. Mas é isso, não gosto. Quem quiser que o faça. Entretanto, fiz esse poema... de ocasião.

Alerta

 

Enquanto isso...

flores morrem, solitárias

num jardim abandonado:

o jardineiro não pode sair de casa

e contaminar o ar.

 

Enquanto isso...

a capelinha é invadia:

o ritual não ascende a alma, dizem

rebaixa o espírito.

 

Enquanto isso...

dar adeus poder engano:

quem vê pensa que é outra coisa

e adeus!

 

Enquanto isso...

O verso desaparece da linha

a página continua em branco

a procurar o par de olhos que ao vai acompanhar

até onde?

 

Enquanto isso... 

Fevereiro 07, 2022

Foureaux

“Um bando de gente suja, suada, malvestida e fedorenta. Um amontoado de gente assim num lugar que mais parecia uma gruta. Eu tinha que passar no meio desse grupo, barulhento. Ofereciam-me carona, cigarro, bebida. Eu sentia nojo e tentava me desvencilhar. Tinha que chegar ao noviciado. O quarto era amplo, claro, limpo. Portas grandes, janelas enormes. Dava de frente para um prédio de apartamentos. A secretária ofereceu-me ingressos para um vernissage à noite. Não o aceitei. Disse que tinha outro compromisso. Voltei para o quarto e procurei por minha mala. Um rapaz muito atencioso veio me atender, enquanto passava pano no chão. Não encontrava minha mala e, ao mesmo tempo, estava no meio da gente suja, vestida e malcheirosa de antes. A secretária sorria. Eu tentava fechar as janelas do quarto. As cortinas (persianas verticais) não funcionava. Não escondiam as miríades de pessoas assentadas na. mureta da rua à espera do ônibus, bem à frente da minha janela. E a secretária sorria. O rapaz passava o pano e não me ajudava. Eu saía andando a procurar a porta do quarto e não encontrava. Passava por lugares que tinha certeza de ter conhecido, mas não os reconhecia. Andada e a gente malcheirosa e malvestida à minha volta. O quarto do noviciado brilhante de tão grande e limpo. a secretária sorrindo. Os lugares conhecidos que eu não reconhecia. Tudo junto, simultâneo. Confuso e claro ao mesmo tempo. São sempre assim os sonhos.

De que adianta anotar o que se lembra dos sonhos? Houve uma vez, um psicanalista disse que isso ajuda na terapia. Tentei, algumas vezes. Cheguei a aproveitar trechos de anotações em romances que escrevi. Na terapia, nunca utilizarei. Não posso dizer se o psicanalista estava certo. Acredito que sim. Não vou procurar um jeito de explicar isso ou de tentar comprovar a hipótese. Penso que não adianta. O tempo passou. O momento passou. O elã passou. E já não faz sentido procurar o sentido, ou não. da afirmação do psicanalista. E assim com todo o resto. Atualmente o que mais me chama a atenção é o fato de eu já vislumbrar uma curva final no caminho. Não a vejo, por suposto. Pressinto-a. Não sei calcular a distância até ela, o tempo que falta, por impossível. Mas sei que está logo ali. Já abro mão de coisas que antes pareciam-me imprescindíveis. A vaidade já não é mais tão edaz. Fica mais fácil admitir que não vale mais a pena que tentar encontrar energia e substância para provar o contrário. Provar para quem? Para mim? Bobagem! Já não tenho necessidade deste tipo de comprovação, de resposta, de explicação. O que tinha de ser foi. E pronto.” (Autor desconhecido)

Fevereiro 04, 2022

Foureaux

Recebi o texto que segue de um/a amigo/a, já não me lembro quem. Tenho certeza de que ele/a não fica ofendido/a pelo meu esquecimento. No entanto, devo dizer que algumas reações me causaram espécie. Uma, em particular, de outra amiga, que diz que estava gostando do texto até que percebeu que se tratava de um texto político. Comecei a rir. A pergunta seria: qual texto não é político? Claro está que “político”, aqui, tem a ver com o conceito de procedimentos, atitudes, relações e correlações no âmbito da cidade, como queriam os gregos – se eu não comento equívoco de interpretação. Não se trata de partidarismo ideológico. No entanto, devo também asseverar que, ao final deste mesmo texto, há uma referência, digamos, discursiva a este recorte conceitual do mesmo termo: “política”. Vá lá..., ninguém é de ferro. Outra reação também foi um tanto engraçada, apesar de repetitiva. O sujeito disse que até a menção à política – no sentido mais restrito, aqui – o texto era uma aula de Português. A partir do referido “ponto” tornou-se mais uma opinião. Isto seria um elogio ou uma desqualificação? Vou morrer sem saber, porque não vou gastar meu tempo especulando sobre o assunto. Segue o tal texto de que, reafirmo, gostei imenso, por concordar com cada sílaba de cada palavra que compõe cada uma de suas orações. Alerto, ainda, que o analfabetismo funcional está matando a capacidade de muita gente – mas bota gente nisso! – para perceber a ironia e a graça num texto que é, apenas, uma provocação inteligente e não uma arma ideológica. Ai que preguiça... Boa leitura! Ah... Em tempo: desconheço a autoria!

Professora de Português dando aula
“Vamos conversar. 
Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica. 
Eu sou professora de português.
Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso.
Eu estava explicando por que não faz diferença nenhuma mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos pra ser ‘neutre’.
Em Português, a vogal temática, na maioria das vezes, não define gênero. Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra. 
Vou mostrar pra vocês.
O motorista: termina em ‘A’ e não é feminino.
O poeta: termina em ‘A’ e não é feminino.
A ação, a depressão, a impressão, a ficção. Todas as palavras que terminam em ‘ão’ são femininas, embora terminem com ‘O’.
Boa parte dos adjetivos da Língua Portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, agradável, etc.
Terminar uma palavra com ‘E’ não faz com que ela seja neutra.
A alface: termina em ‘E’ e é feminino.
O elefante: termina em ‘E’ e é masculino.
Como o gênero em Português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.
E mesmo que fosse o caso, o Português não aceita gênero neutro. Vocês teriam que mudar um idioma inteiro pra combater o ‘preconceito’.
Meu conselho é: em vez de insistir tanto na questão do gênero, entendam, de uma vez por todas, que gênero não existe, é uma coisa socialmente construída. 
O que existe é sexo. 
Entendam, em segundo lugar, que ‘gênero linguístico’, ‘gênero literário’, ‘gênero musical’, são coisas totalmente diferentes de ‘gênero’. 
Não faz absolutamente diferença nenhuma mudar gêneros de palavras. 
Isso não torna o mundo mais acolhedor.
E entendam, em terceiro lugar, que vocês podiam tirar o dedo da tela e parar de falar bobagem e se engajar em algo que realmente fizesse a diferença para melhorar o mundo, ao invés de ficarem arrumando discussões sem sentido. 
Tenham atitude! (Palavra que termina em ‘E’ e é feminina!). 
E parem de ficar militando no sofá! (Palavra que termina em ‘A’ e é masculina).
Quando me questionam porque sou de direita, esta é a explicação:
Quando um tipo de direita não gosta de armas, não as compra; quando um tipo de esquerda não gosta de armas, quer proibi-las.
Quando um tipo de direita é vegetariano, não come carne; quando um tipo de esquerda é vegetariano, quer fazer campanha contra os produtos à base de proteínas animais.
Quando um tipo de direita é homossexual, vive tranquilamente a sua vida; quando um tipo de esquerda é homossexual, faz um auê e inventa que está sofrendo de homofobia.
Quando um tipo de direita é ateu, não vai à igreja, nem à sinagoga, nem à mesquita; quando um tipo de esquerda é ateu, quer que nenhuma alusão a Deus ou a uma religião seja feita na esfera pública.
Quando a economia vai mal, o tipo de direita diz que é necessário arregaçar as mangas e trabalhar mais; quando a economia vai mal, o tipo de esquerda diz que os ‘malvadões’ dos patrões são os responsáveis e param o país.
E a tese final: quando um tipo de direita lê este texto, ele ri, concorda que infelizmente é uma realidade e até compartilha, quando um tipo de esquerda lê este texto, te insulta e te rótula de fascista, nazista, genocida, etc.”

Fevereiro 03, 2022

Foureaux

“No sumário, não havia sequer uma indicação de que tal assunto poderia vir a ser tratado no texto do livro. Igual ausência era notada no índice remissivo. De acordo com os “entendidos” estes dois índices eram necessários para a validação do livro na lista de publicações daquele ano. Em vão. Incontáveis horas de leitura, riscando trechos inteiros, anotando palavras-chave pelas margens da mancha tipográfica. Discussões intermináveis com o supervisor. Interpretações, as mais inesperadas, com os estudantes. Nada. Em vão. O livro não valia nada, mas estava escrito. O que fazer? O burburinho foi grande. Havia rumores de que uma rusga antiga entre o editor e o autor teria sido o motivo da encrenca. Outros diziam que outra pessoa havia escrito o livro que foi roubado para ser lançado. Nada ficou muito bem esclarecido. O que sucedeu foi que a cópia do arquivo com o índice remissivo foi perdida. A apuração não chegou a nome algum, mas ao fim, o arquivo foi encontrado. Em seguida, nova querela. O prazo havia vencido. O detalhe técnico foi apontado pelo editor como obstáculo intransponível. Picuinha, foi o que disseram. Conversa daqui, telefona dali, mais burburinho, e o lançamento aconteceu como previsto originalmente. Três meses e meio depois da data inicial, mas lá estava ele, o livro. Dois cartazes circularam pelos corredores do prédio principal. Duas entradas na programação da rádio. Uma entrevista no canal de televisão que servia de laboratório também foi agendada. Tudo acontecendo normalmente. A pré-venda foi um sucesso. Parece que a venda seguiria pelo mesmo caminho. Era esperar pra ver. No dia do lançamento o salão principal da livraria estava decorado com sobriedade. Espaços livres para circulação, duas colunas com os livros e, ao centro, a mesa para o autor, com algumas cadeiras à volta. Haveria uma sessão de leitura de trechos do tal livro. Convidados chegando. Garçons circulando. Música tocando. A hora passava e o autor não chegava. Não chegou. Dez minutos depois do horário marcado para a sessão de leitura, o editor toma o microfone e anuncia o atraso. Foi interrompido pelo estardalhaço causado pela chegada de um rapaz. Com ar insolente, atravessou o salão sem prestar atenção a nada, nem a ninguém. Interrompeu o editor, tomou-lhe o microfone e anunciou a leitura de trechos. Silêncio nervoso, tenso, carregado. Ao fim da leitura. Alguém interrompe o silêncio e pergunta quem era ele. O rapaz levantou-se e se apresentou como o verdadeiro autor do livro. Contou a história de como conheceu o suposto autor, se aproximou dele, trabalhou para ele como secretário. Com o passar do tempo, tornou-se amigo, quase confidente. O velho começou a discutir os planos do livro que então era lançado. Deu as linhas gerais para o secretário e pediu que ele escrevesse. Foi o que fez. Ao fim do trabalho, o velho decidiu colocar o próprio nome e não comparecer ao lançamento, mandando seu secretário, como aconteceu. Incrédulo, o editor questionou. Muitos, na plateia o acompanharam. O rapaz insolente abriu então um envelope e leu o que nele estava escrito. A assinatura era do velho. Imediatamente, entregou a carta para o editor que confirmou a assinatura e a história contada pelo rapaz. Boquiaberto, viu o insolente sair da livraria, sob o olhar estupefato de todos. Nunca mais foi visto. O velho morreu duas horas depois de saber do sucesso do lançamento, como anunciado posteriormente pela nota da editora. O livro foi um sucesso.” (Autor desconhecido)

Fevereiro 01, 2022

Foureaux

Não há medida certa. A intuição parece ser o melhor critério. O insondável mundo do desejo não se revela inteiro, de uma vez. Aos pedaços, deixando rastros aqui e ali, incomodando mais adiante, a gente vai se dando conta de que ele está ali, atento. Edaz, não se contenta. quanto mais se satisfaz, mais quer, mais busca, mais atormenta. Em que pese a rima que não anima, o desejo pode sempre vencer, pois é de seu feitio assim ser. E, no entanto, não se explica. Não se sente obrigado. Nessa toada, continuo a perguntar: Para quê? Escrever? Quem vai ler? Mas não há tranquilo proceder quando de escrever se trata. A cada dia, a dúvida se renova, mesmo com os amigos elogios. Esses não contam, mas são os que sustentam a persistência. Dois ou três dizem alguma coisa. De resto, a poeira assenta e patina o papel que enruga, amarelece, esfarinha. O tempo. Não acredito que alguém possa “ensinar” a escrever. Não no. sentido em que estou pensando. Que sentido é esse? Cabe a quem me ler tentar descobrir. Não é disso que se trata? Um jogo de gato e rato, fingindo novidade, em cada mútua, sem fim. Sá de Miranda não teve aulas numa oficina de escrita criativa. Antero de Quental não se aconselhou com algum erudito que vendia aulas de leitura. Eles começaram a escrever e pronto. Hoje estão aí, à disposição. E os especuladores que se auto intitulam teóricos, ou pior, críticos, insistem em afirmar em seus sofismas são a mais pura expressão de uma verdade absolutamente inalcançável. Quem escreveu sabe. E pensar que alguém pode se arvorar na hipótese de afirmar o que quis ou não dizer Aristóteles em suas notas de aula. Eram notas de aula mesmo? Alguém as assistiu para atestar o “fato”. E o outro que nunca escreveu, mas só falou? Será mesmo? Teria sido mesmo assim? Enfim... Há coisas que jamais serão elucidadas. Jamais. Não adianta me dizerem que a tradição isso, que a cultura aquilo, ninguém jamais vai ser capaz de afirmar, sem a menor sombra de dúvida, que fulano quis dizer isso ou aquilo. Se a gente não conhece (bem) quem escreveu, conversou com o(a) autor(a), conviveu e discutiu, a possibilidade dessa afirmação inexiste. Sou chato, seu sei. Ainda assim...

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